terça-feira, 17 de novembro de 2015

Autoconhecimento




Piso na cidade úmida em direção à emergência vinte e quatro horas
Piso na trilha de água quente que liga o calçadão de Copacabana a seu incerto mar
Há uma mulher que lê Hans Staden na praça de alimentação.
Há um homem que confunde todos os corações
Há a suspeita de uma doença rara que se abate sobre um corpo indeterminável
Há uma pilha de livros do lado direito de um braço que se estende
na direção do mais impuro amor
É possível que nesse instante dois contrários se anulem
E que o mistério de um desejo nunca enunciado se revele
num gesto percebido pelos mesmos olhos
que agora levo à emergência vinte e quatro horas
Você limpa os vestígios de um dia de praia
A areia condensada em forma de monte bem no meio da sala
Você passa os dedos sobre o livro do navegador que escapou por um triz
E menciona a possibilidade de coincidir uma experiência sobrenatural
com uma confusão lisérgica e
uma certeza lógica
Essa é a mesma possibilidade que me faz permanecer indo
em direção ao mar, à emergência, à praça de alimentação
Investigando maus súbitos
canibais, mares impróprios para banho
como se olhasse a mim  

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

A Pele de Vênus

A Pele de Vênus é um filme de Polanski baseado no romance de Sacher-Masoch intitulado A Vênus das Peles, clássico a partir do qual foi cunhado o termo masoquismo. É interessante lembrar que o masoquismo de Masoch diz respeito ao desejo de submissão de um homem a uma mulher, indo na contramão do imaginário da pornografia contemporânea na qual, via de regra, a mulher é submetida. 

No filme de Polanski,  Thomas é um diretor de teatro que está fazendo audições para uma adaptação do texto de Masoch e está tendo dificuldade em encontrar a atriz ideal. Vanda é uma atriz que chega atrasada para o teste e, num primeiro momento, desagrada o diretor em tudo. Seja como for, a atriz consegue convencê-lo a testá-la e, como não há mais atores presentes, ele próprio faz o papel de Severin, aquele que em A Vênus das Peles deseja se submeter à Wanda ( notadamente quase homônima à inquietante atriz).

O filme se desenrola de forma que o talento em atuação de Vanda vai se revelando surpreendente a cada momento. Vanda não apenas decorou todas as falas, como tem ideias perspicazes no que diz respeito à iluminação e cenografia, além de se mostrar bastante versada no teatro clássico, citando as Bacantes de Eurípedes com precisão. Aos poucos vamos assistindo Thomas se perturbar com o talento e a presença de Vanda, que de inapropriada passa a sedutora e intrigante. Um dos pontos interessantes do filme é como a leitura da peça vai se misturando com a relação que está sendo forjada entre a atriz e o diretor, mistura que chega a seu ápice no final do filme quando Thomas está totalmente rendido à Vanda realizando todos os estranhos pedidos que ela o faz. 

Entretanto, no meu ponto de vista, a questão do Polanski não é apenas as tangências e as sobreposições entre atuação e realidade e muito menos uma simples crítica ao machismo presente no texto de Masoch. A última cena do filme é reveladora, pois Vanda não se se satisfaz em ver o diretor rendido às suas ordens, ela decide amarrá-lo em um objeto cenográfico em formato de falo e se transforma em uma Bacante, tomada de energia dionisíaca, dança e enloquece diante do homem antes de deixá-lo preso ao imenso falo. Não me parecem também gratuitos os planos de entrada e saída do teatro, nos quais a fachada é bem exibida e exaltada. 

                                      



O teatro é a arena de Dionísio, Deus não apenas da embriaguez, da loucura e do hedonismo, mas também da multiplicidade e dos semblantes. Se consultarmos a obra de Eurípides citada por Vanda, leremos uma história na qual Dionísio quer matar o rei Penteu por este não acreditar em sua origem divina e por não permitir que seu culto fosse prestado. Para realizar sua vingança, o Deus precisa contar com as mulheres - as Bacantes - e também com a curiosidade de Penteu acerca das práticas dessas mênades. Enquanto as Bacantes estão  no monte Citéron realizando feitos especialmente incríveis, como colocar serpentes em seus cabelos para reverenciar o Deus, amamentar gazelas e lobos selvagens e fazer vinho, leite e água brotar do solo, Dionísio, travestido de pastor estrangeiro, aconselha  Penteu a vestir-se  como uma mulher e ir ao Citéron. O rei chega próximo às Bacantes e sobe em uma árvore para poder testemunhar os seus feitos e então Dionísio grita às suas devotas, apontando-lhes o homem no topo da árvore. Em êxtase, as Bacantes arrancam Penteu da árvore e rasgam seu corpo em pedaços.

Polanski sabe que a encenação tem relação com as forças dionisíacas e que tais forças nada tem a ver com as essências ou com a crença absoluta na consistência fálica. O papel da dominadora falicizada, que obedece a um contrato que firma posições fixas, não interessa à Vanda, uma mulher que prefere a violência das Bacantes: essa que não requer as insígnias fálicas e que dá a ver a própria precariedade do que se acredita absoluto e assegurado. Vanda acredita nos semblantes, no êxtase e na multiplicidade como uma potência mais perigosa do que as coladas ao reforço das posições mestre-serviçal. 





Assim, penso que Polanski não apenas faz uma crítica à inconsistência do pensamento machista como também à noção de que a solução ao machismo seria uma redistribuição pretensamente justa das insígnias fálicas ou uma ontologia do feminino que lhe desse consistência a partir dos significantes de "dominadora" ou "mestre". Polanski parece apostar nessa força não-toda fálica que sabota as crenças totalizantes e celebra o descontrole, a surpresa e a fúria desejante. Não se trata de transformar Vanda em uma "musa sádica" ou exaltá-la por via idealizada qualquer, trata-se justamente de positivar o feminino por sua resistente indefinição e sua afinidade com o jogo dos semblantes. Acredito cada vez mais na sabotagem do feminino ideal (seja qual for o ideal) como uma prática ética que assegura a dignidade da alteridade e acredito que A Pele de Vênus vai nessa direção apostando que a alternativa à violência contra o feminino é uma violência do feminino: essa que se ancora na diferença e tem como inimigo as forças idealizantes.