quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Verticordia


O corpo pesa, disso eu sei desde criança. Em cada desejo por um impossível voo, que cedo ou tarde resultava em uma queda. O remédio era pegar um pequeno espelho, posicioná-lo rente à minha barriga, apontá-lo para cima e andar pela casa olhando para o reflexo do teto. A notícia do chão vinha nos esbarros, nos choques, em tropeços, mas havia o desejo de transtornar o peso, suspender a gravidade e inventar uma gravidade própria. Pisar no teto era a vertigem conquistada. Anos depois eu li sobre o mito do pós-vida no egito kemético, no qual todo aquele que morresse seria julgado pela deusa Maat no Saguão das Duas Verdades. O julgamento consistiria em pesar o coração do julgado usando a pena de um avestruz de contrapeso. Caso o coração pesasse mais que essa pluma, a alma perderia a chance de reencarnar. Para os egípcios antigos o critério de uma vida justa era vive-la com o coração sobrenaturalmente leve.    

O coração leve, gosto de pensar, é também um coração frágil. Onde pulsa a vida abunda a fragilidade. O momento do equilíbrio é instante da crise. Para burlar o peso é preciso não de mais força, mais afirmação, mais consistência, é preciso justo do contrário.  É na desistência de si, no sentido de colocar tudo que há de consistente à prova, que a criação da existência tem vez. Em alguns de meus trabalhos percebo recorrer esse desejo pela invenção da víscera. Desconfiar do visceral como estrutura, desorganizá-lo. Desconfiar do visceral como puro caos, compreender a superfície do profundo, sua pele, o seu desenho. 

Quando trabalho com o corpo, percebo que meu interesse é pelo corpo qualquer.  O pobre, o maldito, o visitante, o errante como imagens potentes do ser qualquer. Giorgio Agamben, no livro A Comunidade que vem, faz o elogio  do ser qualquer e diferencia o qualquer do ‘não importa qual’ afirmando-o antes como ‘o ser tal que, de todo modo, importa’. Para Agamben o mais próprio de uma criatura é a sua substituibilidade, aí residiria toda singularidade do comum. Esse é o corpo qualquer que me interessa, isso que é pleno de singularidade justo no ponto em que é  absolutamente substituível, já que não se trata aqui de afirmações identitárias, mas de dispersões de formas de viver. O ser qualquer me interessa na medida em que não se unifica na essência, mas que se dispersa na existência. Agamben afirma ainda que a singularidade do qualquer pode ser expressa na noção de exemplo. O exemplo escapa da antinomia entre  universal e  particular. É uma singularidade entre outras e está, porém, no lugar de cada uma delas, vale para todas.  Em grego para-deigma é aquilo que se mostra ao lado. Em alemão Bei-spiel, aquilo que joga ao lado. O lugar próprio do exemplo é sempre ao lado de si mesmo, no espaço vazio em que se desdobra sua vida inquantificável e inesquecível. 

Recentemente realizei a performance Verticordia, que consistiu em amarrar uma pedra de aproximadamente 400g no meu peito e tentar boiar com ela no mar. 400g é o peso médio de um coração humano. Verticordia é o epíteto de uma Vênus: aquela que coloca os corações em vertigem. Nessa série de performances nas quais pretendo investigar os epítetos da Vênus busco sair da noção mitológica para criar uma acepção afetiva de cada um deles. Assim, na minha mitologia afetiva, Verticordia coloca os corações em estado vertiginoso apenas porque ela mesma sabe sustentar o peso do coração comum. Como na noção de exemplo para Agamben, amarrei o peso do coração ao lado do meu. Dois corações justapostos, empilhados. Boiar era uma questão de deixar o corpo inexplicavelmente leve, de não lutar, de desistir do meu próprio peso e sustentar esse peso outro que era, a um só tempo, comum e impróprio.
   
Agamben diz:  a passagem da potência ao ato, da língua à fala, do comum ao próprio acontece a cada vez nos dois sentidos segundo uma linha de cintilação alternante na qual natureza comum e singularidade, potência e ato trocam de papéis e se penetram reciprocamente. O ser que se gera nessa linha é o ser qualquer e a maneira na qual ele passa do comum ao próprio e do próprio ao comum se chama uso – ou seja, ethos.

O ser, para Agamben, portanto, é o modo de ser. Aqui o filósofo indica um caminho comum entre ontologia e ética. Ser nunca precederia o modo como se é. Vislumbro aqui uma ideia de arte como ética – que divergiria de  arte como política – pela exaltação dos usos de si como dignificação de todo ser. Inventar o próprio peso como uma ética. Interessar-me pelo outro como a busca por aquilo que houvesse de mais singular em mim. Meu constante interesse pelo impróprio como um olhar atento ao que me é mais íntimo. Criar, não o faço com o estômago, faço com toda a pele que não minha. Crio no instante silencioso entre uma batida do coração e a outra.


Aqui, portanto, penso que o estado atual da minha pesquisa poderia formulado a partir do desejo pela afirmativa: equilibro o peso do coração comum.  





Imagens da performance endereçada à fotografia Verticordia feita no começo de 2015 com colaboração da fotógrafa Daniela Paoliello.