segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Promessas


- Contornarei a solidez das coisas com a luz de uma tontura. Desconfiarei dos espelhos polidos. Serei tragada pelas grandes alturas, os rostos enfurecidos, os lábios silentes de corpos que brilham. Dançarei no mormaço dos dias quentes quando já nem se respira. O sol me queimará sem bondade e o torpor será outro nome para a vontade de romper a pele. O asfalto flutuará no delírio da quentura e nessa hora estarei com os dois pés bem fincados no chão.

- Darei as mãos aos espaços escuros, aos corpos frágeis, às ideias traidoras. O cogito derreterá diante dessa leveza furiosa que preenche a noite. Deitarei ao lado do homem que mora na esquina. Beberei da sua aguardente. Falaremos tête-à-tête com o céu. O movimento das nuvens obedecerá minhas retinas. Quando eu fechar os olhos, o sol sumirá e todos se abraçarão de medo, amor e mudez.  Um imenso silêncio se fará enquanto diversas mãos se procurarão no escuro já a um passo do naufrágio. Trovoadas dentro do meu peito ecoarão. 

- Operarei misteriosamente com a verdade. Deixarei que caiam os edifícios de pedra, as cercas de arame, os monumentos constantes. Erguerei tendas, altares provisórios. O instante será o nome bendito do tempo e o coração da eternidade baterá mais lento nas minhas mãos.

-  Farei perguntas às raízes, deixarei que meus olhos se tinjam de sol. Oferecerei o rosto ao apetite da terra e minha boca à umidade infalível do chão. Feras virão banquetear comigo. Eu beijarei o corpo das aves, confundirei dedos e penas, pernas e asas, nuvens carregadas e a pele ardente, temporal e sono quieto.

- Quebrarei copos, observarei astros a olho nu, mostrarei mais da minha pele.

- Olharei avidamente as curvas do corpo da dúvida. Passarei os dedos em seus cabelos indomados. Beijarei sua boca quente. Lavarei seus pés.

-  Repousarei no mínimo, celebrarei o escasso, festejarei o nada. A fome será minha fartura, a sede, um deleite. Meu  cansaço será também um ânimo. Mas o juízo, este eu perderei.

- Descerei à altura dos apetites brutos, como quem se abaixa em uma saudação. Pensarei com o ventre porque todo pensamento é mágico.

- Na garganta, as armas estarão a postos.

- Abrirei mais janelas. O fora terá espaço dentro. O abrigo não será de todo separado da ameaça. A festa será o norte do corpo.

- Celebrarei de dia aquilo que é o noturno, e à noite festejarei os dias. Lerei destinos em tripas, no céu, na borra do café, nos rostos e nas mãos. Afinal o destino marca tudo, não deixa nada impune.

- Não domarei o medo, mas tentarei sentar no seu dorso.

- O que me ofende será também o que me nomeia. Não deixarei de percorrer a contramão. Esconderei tesouros na luz óbvia do meio-dia.

- Serei mansa e amarei os que me cercam, mas conspirarei até o fim.


segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Femme fatale


Eu sou aquele que não te salvou 
Sou  teu choro preso na goela
A minha infância em terra ensolarada
uma noite úmida
teu coração que dispara agora

Eu sou esse  êxtase doméstico
[teu rosto se vira rapidamente para lâmpada fluorescente enquanto pintas as unhas dos pés]
E você, esperta como uma órfã, anda pelas ruas adivinhando o meu olho  
Sempre essa certeza de que quando eu te visse você estaria despreparada
Você ficava tentando se despreparar

Cozinhava um frango com mostarda
chorava no sofá amarelo
escondia quadros atrás de móveis
Era genial, de súbito
Bruta e chata ao fim do dia.
Sentia-se desprezada pelo porteiro
Trocava olhares com a caixa do mercado
Comentava sobre a parricida
que agora vai casar

Mas nada disso era ainda eu,
que te esqueci durante aquela semana inteira,
que não voltei apesar de ter dito que era bom.
Eu que te fascinei porque te lembrava:
um mar não exótico, como o de Ipanema,
um encontro ferozmente curto,
 um porre imenso com um passeio de táxi depois,
uma cachoeira que nunca se achou,
o livro que você escreve há anos mesmo sabendo que nem escreve assim tão bem.

Eu sou esse corpo que observaste dormir, meio rosto,
metade afundada num travesseiro escuro,
metade iluminada.


Eu sou esse teu rosto insone que não entende nada e sorri. 

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Bilhete para Adília Lopes


“Ah uma mão que me puxasse 
para o escuro”

Quem me dera ser um corpo solto no espaço, dançando vestida de incêndio, sem jeito,  mas apetitosa feito uma mulher num quadro de Rubens ( encrespada como se houvesse um naufrágio branco em cada pé).  Em vez de tormentas, me sobram bolores que  catalogo sobre a pele. Pratico vilanias  encenadas . Durante o dia, transtorno catalogações bibliográficas, apenas os  números e os nomes me  importam, nenhuma relação de antemão. Nenhuma exegese nas estantes.  O papel é um pão para a alma, superfície imaculada, sem remendos. 

É preciso ser doida para sacrificar a  página. Deslizo pela biblioteca à tarde e  o acontecimento é um incômodo.  A parte visível do iceberg é sempre a mais misteriosa. Para ocupar as noites,  escrevo com ossos e olhos e também vivo como  escrevo. A morte é um enfado, por isso prefiro viver. Se nada mais me anima, me consola que o bordel  está sempre lá, é um vigor. O amor mais cristalino do mundo deve estar enterrado em uma casa dessas,  feito a ervilha debaixo dos mil lençóis. Mas evito a zona porque sofro de trágicas constipações. Quando estou mal-humorada,  zombo do leitor, deixo que o tesouro escape e a inspiração me corta a  língua. Adormeço entre seres que roçam a barriga no chão. Cobras, lagartos, baratas.

Sofro humilhações ortográficas e administro doses não letais de desgosto. E vou do café da manhã à mais intensa paixão, esfrego os olhos até cair no insincero choro. E meu amado me esquece como quem esquece um guarda-chuva,  muito delicadamente. Para fazer das tripas coração é preciso: devorar qualquer semelhança, mesmo as siamesas. Ser mais quente que uma torradeira, pelar o fogo. Fazer comercio com as profundezas. Praticar homicídios que remoçam. Saber gerir os tempos. Ter a desordenada víscera como o centro, e o tumulto como um pulso acelerado. 

segunda-feira, 15 de setembro de 2014



Não era pelos olhos que lembravam um mar antigo, cheio da promessa de vida misteriosa estalando na pele prateada dos bichos insones. Também não era pelas pernas fina e longas, corpo de adaga oriental, cheia de sensual assimetria e os sons estranhos de uma estepe esquecida ecoando em seus recuos. Tampouco pela língua que rangia contra os dentes finos, proferindo as palavras mais simples do léxico, pegando os objetos pelas pernas, voz com textura de chão. 

Era sim pelo vento frio que carcomia seu rosto avermelhado em junho, pelos caracóis que matou suavemente com os dedos dos pés no jardim de infância, pelo amor dolorido ao cão de pelo negro que teve até os dezenove e que um dia fugiu. Era, sobretudo, pela devoção aos trabalhos noturnos: catar o lixo, sonhar, manchar o branco imaculado das toalhas com o preto dos olhos. Pelo manejo dos restos diurnos com elegância desvairada, o passo em linha torta, a cadência dos membros cansados. Era pela silenciosa compreensão da vida, pela aceitação corajosa de tudo que não podia tocar, pelo corpo simples e sem grandes cosméticas, porque lhe convinha as orelhas nuas, a boca crua, os cabelos suavemente impróprios. 

Era importante  que soubesse que nunca foi pelo seu rosto de angulações raras, pelos seus dedos finos, pelos panos orientais que lhe cobriam peito e ventre. Que sempre foi pelo tesouro que enxergava em cada erro, pelas ingênuas esculturas que fazia com caixas de feira abandonadas, pelas noites que passava com o coração explodindo no peito, pela alegria sem sentido, por sua imensa afinidade com a terra, pelo seu jeito de dançar sem jeito, porque sempre foi onde ela esquecia de ser que eu podia vê-la, onde ela suavizava os contornos e afrouxava a afirmação de que estava lá é que se fazia rara. Onde mostrava que era pura falha leve podia-se ver que reluzia.   

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

É que o dia passa a seco, nenhuma dormência, nenhum esquecimento. O dia pesado e rígido diante do espelho, revestindo todas as paredes, fazendo peso invisível no chão. Difícil eleger o que é alegria nesse emaranhado de claridade e espera. Estranho recorrer a esses velhos nomes, sem  desejo de encontro, apenas pelo prazer da fantasia colada em cada um, apenas o prazer de dizê-los,  a língua estalando no céu da boca, se debatendo contra os dentes. São ainda mais estranhas essas investigações: quanto pesava, havia algo nascendo dentro, como estava por fora, como lhe chamavam,  valia quanto.  Observa-se todos os aspectos, quantidades presentes no eixo x e no outro, mas sobretudo o indizível, acima de tudo a mudez. Acima de tudo a mudez porque era ali que nos encontrávamos: a muda sedução enquanto você ia ao banheiro e eu ficava esperando na sala ao lado, você dormindo um colchão acima do meu, as boca preenchidas talvez se querendo durante o jantar. Ainda mais quando eu estava sem nenhuma notícia sua e infinitamente mais quando sequer nos conhecíamos. É que você pensa que é tão esperta, me disse que quando criança leu o dicionário inteiro,  A a Z, daqueles bem grandões. Você decorou todas as capitais do mundo e os principais rios de cada continente. Aquele dia você estava tão alegre  dizendo  Volga Danúbio Douro Ural Dniepre Kama Don Péchora Dniestre Reno. E eu decorando cada parte do teu rosto, a testa larga, os olhos rasgados lembrança de alguma selva ou savana, a boca tortinha para a esquerda, o nariz apontando para cima. A boca tortinha perturbando toda a noite e talvez o mundo inteiro. Dvina Setentrional e Ocidental Elba Donetz Vistula Weser. Teus cabelos cor de palha queimada, teu cheiro de verão desafiando o alto inverno. Sena Ardila Loire. Tua voz. O Tejo. E o calmo sentido das coisas era muito parecido com a incontrolável confusão daquela hora feita de pele,  medo, luminosidade, geografia, correnteza. 

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Contratempo





(Laura Lucia Sanz)

Gosto de lembrar da noite em que mandamos missivas ao falso cego. Bebida  abrindo trincheira no corpo e aquela ternura fora de hora, os lábios que tinham a forma de um coração desenhado por uma criança. Gosto de nunca mais poder viver aquela noite repleta de pequenas ânsias. Porque nada mais humano que querer um pouco. Os grandes desejos são como milagres, são clara raridade incalculada. O mais humano são nossos pés  cobertos dessa manta quente e amanhã nem sinal. Os nossos cabelos trançados e logo mais nem sei. Mais humano o meu corpo enrugando, as juntas se quebrando. O milagre é essa ferida que fecha, marchando contra o tempo, promovendo um nascimento fora de hora. Milagre era tua pele parecer tão a minha e eu nem saber teu nome. Mas eu falava sobre aquela noite, o gosto dos copos usados, teu jeito tão impreciso de mostrar que queria mesmo era estar lá. O céu que desabava e as pequenas demolições entre cada um de nós. Ana revirava os olhos, Julio já nem se movia. Mas havia uma alegria embriagada, um erro todo libertador que era o nosso encontro. Retidão já nenhuma, apenas os braços delgados de Aline, a voz barítona de Márcio e entre nós dois  esse tropeço constante que sustenta a graça da  mais ordenada dança.


quarta-feira, 2 de julho de 2014

O diabo no caminho



Diabólico é o caminho, isso não deixa negar a aproximação feita na cultura brasileira entre o orixá africano Exu e o diabo judaico-cristão. O nosso Exu reina sobre as encruzilhadas, a sobreposição de caminhos. Exu, em certo sentido, é uma das faces do devir. Um dos nomes para o diabo é Gira Mundo: o senhor dos caminhares, das estradas, dos moveres. Capaz de abrir portas e ligar os caminhos, Exu é sempre dúbio, adorado e temido. É um elemento dialético, nem bom nem mau,  mas que pode assustar e espantar, assim como aquilo que se pode encontrar quando se caminha.                                     

  Diabólica é também a multiplicidade, as bordas. O Diabo, neste sentido, está sempre contra o unitário, inimigo de todo centro. Michel Maffesoli em A Parte do Diabo (2004) localiza a sabedoria demoníaca contra a violência totalitária de qualquer universalismo sendo uma sabedoria do corpo e da vida que incorpora até mesmo o que há de mais selvagem na existência. O autor afirma que o pensamento dicotômico e maniqueísta que assombra toda a racionalidade ocidental o tem uma origem divina.        O diabo como multiplicidade seria o reconhecimento das misturas, dos enlaces entre luz e sombra. O pensamento maniqueísta teria dado origem também à perversa associação entre mesmo e bem contra outro e mau. Nesse sentido, o encontro com qualquer alteridade radical se dá como encontro com o obscuro, com a face maldosa do ser. O agir diabólico seria perceber no outro, no incógnito da terra, uma outra coisa que não o puro mau. A cultura europeia colocou durante séculos tudo de incompreensível, de excessivo, de ambíguo, de irredutível ao sentido sob o signo do mau. A terra incógnita era lugar do fantástico, do ilimitado e do heterogêneo, mas o que se descobria outro logo passava a habitar a anônima e infame periferia do Idêntico. A sedutora terra incógnita é morada Outro e é, portanto, local de medo e de desejo, de repulsa e de atração.                                                                                                                    

Diabólico é o bordejante. É o sem identidade substancial, que pode existir de muitas formas e, mais do que isso, o que quer desmoronar aquilo que só existe de um modo, que sabota tudo que é idêntico a si.  Ettore Finazzi-Agrò ressalta que, não por acaso, muitas crônicas de conquista da América contêm uma reprovação religiosa acerca das culturas politeístas:  a multiplicidade seria, em si, uma manifestação de Satã. Para o pensamento eurocêntrico, tudo que se esquiva de uma individuação encontra logo a sua definição demoníaca. Exemplo extremado do outro demoníaco é alteridade-devoradora dos indígenas: o canibalismo. Hans Staden foi um jovem aventureiro alemão do século XVI que, após uma série se naufrágios e motins, encontrou-se com índios antropófagos em São Vicente, atual litoral de São Paulo. Staden foi aprisionado e, por pouco, não acaba devorado pelos seus sequestradores. Ao retornar à Europa, o viajante relatou sua experiência em um livro que teve sua primeira edição em 1557.    

  A antropofagia assustou o europeu a ponto de este identificar o indígena com o diabo sem nenhum esforço. Essa relação está marcada nas gravuras feitas por Theodor de Bry a partir dos relatos de Staden. Muitas imagens do novo mundo podem ser comparadas aos infernos de Hieronymus Bosch e de outros pintores medievais onde devorações, entrelaçamento de corpos, festa, horror e orgias recorrem. Na pintura Inferno, que um autor português não identificado pintou no século XVI, reúnem-se corpos sendo aviltados por demônios similares aos dos bestiários mediáveis. Porém, diante de uma caldeira onde fervem homens – possivelmente falsos religiosos, devido o corte de cabelo franciscano – está o diabo representado como um índio brasileiro tendo como coroa um cocar de penas. A tangência mais evidente entre inferno e a América são as prática antropofágicas: o inferno é sempre local para devorar ou ser devorado. Mesmo no Grande Sertão: Veredas há essa relação. O personagem Riobaldo fala: Quem tem mais dose de demo dentro de si é índio, qualquer raça de bugre (ROSA, 2001, p.38).                                                                            
Dentre as inúmeras leituras acerca da antropofagia, interessa aqui pensar na operação desistência de si implicada na incorporação do outro. Muito se pensa na ingestão do inimigo sacro pelo desejo de aumento das forças, mas é interessante pensar que as forças do antropófago não podem ser a reafirmação do mesmo, já que a força pela incorporação do outro  implica, de algum modo, em desistir da consistência de si. Finazzi-Agrò (1991) afirma ainda que a relação com a alteridade é o resultado de uma queda ou de um recuo - é, em suma, a renúncia à coerência e à univocidade do que é Idêntico. Para chegar ao Outro seria indispensável uma forma de desistência: desistir como um de-existir, um posicionar-se  de outro modo na existência. Envolveria a criação de porosidade na fronteira que separa o próprio do impróprio, o mesmo do outro; e, só colocando-se nessa condição de permeabilidade, desistir poderia ser resistir.  Fazendo conviver identidade e diferença se poderia produzir uma espécie de ultrapassagem na qual a borda que divide o lugar do conhecido do mesmo e a  terra incógnita do outro se faz local de encontros profícuos.  Nesse sentido, ter mais dose de demo em si pode ser pensado como: ter mais dose do outro em si.

Da minha dissertação, Travessias praticadas: a viagem como ensaio, que pode ser lida aqui

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Notas sobre Nymphomaniac - parte II

Na segunda parte do filme Nymphomanic, Joe inicia sua narrativa se dizendo sexualmente insensível e recorre a uma experiência da infância para falar de sua primeira relação com o gozo. Em uma expedição às montanhas, tem uma experiência de flutuação na qual recebe a visão de duas mulheres: Messalina e a Grande Prostituta da Babilônia. Junto desta visão tem um orgasmo espontâneo.


Há algo de místico nesta experiência de gozo,  algo que transborda a anatomia e a linguagem. Lacan diria que há em Joe, como alguém que se posiciona no lado feminino, a possibilidade de um gozo não-fálico, de um gozo Outro. Convém lembrar que, para Lacan, o falo não é nada que se possa localizar no corpo, mas algo que nos inscreve no simbólico. Assim, dizer que há um gozo Outro – não-fálico – é admitir a possibilidade de uma realização pulsional que não se organiza no sentido, que escapa à medida simbólica. Fui à Bíblia ler sobre a Grande Prostituta da Babilônia, encontrei esta descrição:

E a mulher estava vestida de púrpura e de escarlata, e adornada com ouro, e pedras preciosas e pérolas; e tinha na sua mão um cálice de ouro cheio das abominações e da imundícia da sua fornicação. E na sua testa estava escrito o nome: Mistério, a grande babilônia, a mãe das prostituições e abominações da terra. (Apocalipse 17, 4-5)

Da Grande Prostitua, portanto, sabe-se que tem relação com o sexo, com a imundice e que em sua testa há um significante: o do mistério. Assim como Messalina, trata-se de uma mulher mítica que encarna a potência infame. Como as mulheres de sua visão, Joe também se vê como uma criatura absolutamente infame.  Lacan, em seu projeto teórico, dignifica essa infâmia como aquilo que faz enigma à lógica fálica, à lógica da castração, já que ao feminino haveria a possibilidade de operar não-totalmente nesta lógica. .

Dessa primeira cena do filme passo imediatamente para a última: Joe dá um tiro em Siegfried. O simpático e assexuado senhor, que durante todo o filme detém o saber e concede sentido  às narrativas de Joe, sucumbe a um desmedido desejo e tenta fazer sexo com ela, sendo que Joe não concede e atira nele. O fato de Siegfried se dizer assexuado, um homem das letras, regido pela lógica é como se ele dissesse: sou  um sujeito erguido pelo pensamento e não-clivado pelo sexo, não barrado pelo desejo. Acontece de Lars Von Trier nos sugerir que o sentido nunca pode dar conta da existência.




Em suas sessões com K., Joe goza roçando-se em um livro. Essa imagem me parece fundamental: ali, onde não há “palavra de segurança”, existe a possibilidade de gozar. Ou seja, não reside na experiência do saber a possibilidade de ultrapassar a si próprio, de se surpreender com o mais íntimo. É no inseguro que se goza, é  na desmesura e não no sentido, é no corpo e não na palavra,.  


 Já que o sentido não dá conta da existência, a traição insurge como a marca desse real que implode a linguagem.  No filme, a traição recorre nas relações travadas pelos personagens de muitos modos. Me parece, entretanto, que a traição se dá não como a falência de cada um dos encontros, mas como a própria verdade do desejo: a verdade do desejo é trair o sentido. 

"Ninfomania" é uma patologização que tem relação com o excesso: na cultura, o feminino sempre está no lugar do excesso, é aquilo que excede em faltar. Mas o que é mais infame e o que provoca todo tipo de angústia  é que  a mulher não é quantificável.  Fico pensando que muito da obsessão em se fazer concursos de miss, ou eleições de musas, tem a ver com um desejo em quantificar o feminino. Tentam medir quem é mais mulher para apaziguar essa potência infernal do feminino de nunca estar onde promete, mas a medição se apresenta falha a cada vez que se renova a escolha ( A mulher, enfim, não era essa, nem aquela, nem a outra, talvez seja a próxima).  Não ser quantificável – escapar da hegemonia  do simbólico – é o que aponta à possibilidade desse gozo Outro, mas também o que provoca essa estreita e aviltante relação com a infâmia.  

Nymphomanic não é um filme didático, não aponta saídas para os impasses da sexualidade, mas mostra que é próprio do desejo não garantir nada (ainda sustente tudo). Creio que Lars Von Trier exalta a mulher como essa quem pode apontar para a cultura falocêntrica (obcecada por sentido) que o que nos é mais próprio – desejar – nos é mais estranho e que nos cabe a difícil tarefa de nos responsabilizarmos pela alteridade que nos habita. Ainda que não seja um filme com uma moral, Lars Von Trier, ao fim, mata o senhor falastrão assexuado,  o “inocente”, nos dando a ver que caber na medida da própria razão não é, e nunca será, o destino dos falantes. 

quarta-feira, 4 de junho de 2014

vida forma


“Os fogos dos astros e a aurora boreal estremecem no que é, apesar de tudo, a noite negra.”  Marguerite Yourcenar


Afirmativa sem reservas: amar sem exceção. Era noite e andávamos, eu tropeçava nos teus pés, caíamos com a barriga rente ao chão. E de tudo sobrava um riso, uma espécie de loucura. Depois eram teus dedos que me abraçavam, eu dançava com as tuas mãos. Uma lenta e corrompida valsa com teu indicador, um tango triste com o anelar e um samba sem reparos com o dedo menor. Teus olhos me acompanhavam mudos enquanto eu dizia da minha paixão: que toda existência fosse uma dignidade.  Então tu seguravas meu braço, com feroz delicadeza, desenhava um invisível traço no meu peito e dizia: a vida, minha pobre criança, é muita coisa, mas é principalmente forma. Então eu revirava os olhos, tomava mais um gole, calava, depois repetia sem parar frases difíceis, como a gente vai embora daqui, eu posso dormir onde você mora, que ônibus passa lá, por que é que os céus não desabam, o que é mais importante reter dessa noite, será que dá pra nadar até aquela ilha, como a gente volta para casa, qual o limite do pensamento. O  mar era assombrado de mitos e lavamos nossos corpos com navegações, tormentas, espantos, sereias ardilosas e pequenos peixes prateados.  Te disse que eu queria ser um caleidoscópio, um lago. Isso te fortalece ou  te fragiliza? Perguntavas depois de morrer de rir.  E dedilhavas meus pés: passavas as mãos por cada osso, subias para as canela e depois pulavas direto para as têmporas. Teus ossos são firmes, parecem raízes, parece a estrutura de um templo, um emaranhado de galhos. Falavas. A vida não tem sentido, a essência não perfura, fica rente. E, se não tem sentido, só pode ter forma, semblante, direção.  Viver é desenhar o tempo.  Eu era tomada de alegria lampejante de uma morna compreensão. Me erguia de súbito, dançava de um jeito leve e torto, beijava tua boca com ternura e depois rangia meus dentes nos teus. Entendi que o limite do pensamento só poderia ser esse: amar a humanidade inteira, sem exceções. Mesmo aquele que me mata. Mesmo aquele que fere. O amor pela diferença radical era o limite. Não repetir o gesto que aniquila era o desafio mais apaixonado do meu corpo. Ser apenas aquilo que diz sim: afirmar a vida forma.  Era muito tarde e tínhamos medo de tanta sombria luz. Porque nada daquilo tinha parentesco com a eternidade. Falei que o efêmero doía. Você disse que a eternidade era o outro nome do instante. Que se eu fechasse os olhos ia entender que o mais importante era nascer e morrer com a mesma fúria, o mesmo choro alucinado, a mesma aceitação. O que é aquilo que tu mais amas, perguntei.  Poder recomeçar. Frustrar a encarnação. Mover-se junto dos movimentos do céu.  Ter sede pela ausência de todo nome. Êxtase telúrico.  Mas  tu és a própria terra, eu pegava nos teus ombros.  Para te habitar é preciso estar disposta a morrer em ti. É preciso confiar em tua imprevisível ordem.  De repente, amanheceu, e a luz era uma fera.  Teu som me embalava pela casa. Já quase não te via.  Pra onde vamos?  Te perguntei enquanto seguia com alegria e tropeço na direção oposta ao medo. 

sexta-feira, 16 de maio de 2014

faca cega

havia gargalhadas, tilintares, um bocejo
havia Lucio despedindo-se dos entes
ia para longe, nunca mais se soube dele
a pele morena de Lucio contra aquela faca cega
era de morrer de amor
mas havia um corpo exposto sobre a mesa
e milhares de olhos nadando sobre ele
havia a marca de um molar
rente ao meu pescoço
eu já não entendia o que era sono
e o que era aquele efeito de subitamente se ver de fora
era eu de pé, aquela mulher loira, o contador
e, como se não soubéssemos que iria amanhecer
violentamente,
nos apalpávamos com uma alegria furiosa
quem propôs a roleta russa não fui eu
foi alguém com os pulsos mais delgados
naquela hora eu tive tanto medo que achei que ia quebrar em dois
mas não foi pior que aquela noite de verão
não foi pior que desmoronar em pleno ataque
que perder o equilíbrio rente àqueles olhos
que tremer e apertar o gatilho contra o peito errado
aquela hora não foi pior
que queimar a língua
que perder o sono numa madrugada pesada de tanto silêncio
que estar viva numa madrugada  toda feita de silêncio
não foi pior
porque logo houve algo como uma dança
uma mão que agarrou meus braços
um vermelho tingindo os meus pés
a hora de partir
havia a lembrança de uma ternura extrema
de um sufoco tão total
havia eu escapando na hora exata
fugindo pelos corredores
descendo por um elevador
ganhando um texto pronto em plena madrugada
um crime sem culpados em plena madrugada
eu imaginando se Lucio teria se arrepiado
com a minha pele
antes de partir
em plena madrugada
agora havia apenas meu peito ofegante
o pulso aberto
a sensação que quase morte
é coisa de carne viva

segunda-feira, 12 de maio de 2014



A dança ou A anatomia dos Anjos

para Holbein Menezes

Há uma outra versão que diz que quando ele chega ao céu os anjos dançam. Incontáveis querubins andróginos o saúdam com um baile de samba de gafieira. Entre zig-zags, malandragens, inversões, travadas, abraços e enroscos, os anjos riem. Ele fica de canto, só olhando, os pequenos pés afundando as nuvens fofas. De vez em quando um querubim tropeça e é a maior troça. Aos anjos só é permitido fazer festa quando uma alma alegre é acolhida. Suas grandes asas atrapalham um pouco a movimentação, mas também criam uma impensada forma de erotismo. As penas roçam os olhos angelicais, acariciam seus braços, por vezes se prendem por um instante entre suas pernas. Quando dançam, os anjos elaboram seu complicadíssimo sexo. Feito de purezas dilatadas e perversas conjunturas de cócegas e ânsias.  Quando acontece esse baile é possível que na terra chova, ou que ventanias exageradas varram as ruas e os campos nus. O tremor dos anjos bailarinos afeta a terra sobremaneira, por isso  é sabido no céu que alegria é a força mais perigosa que há.                                 
A anatomia dos anjos é uma coisa interessante. Uma espécie de maquinaria, um labirinto de carne e voo. Quando ele chegou ao baile, se impressionou primeiro foi com aqueles corpos. Diferente do que se pensa, os anjos não são menos carnais que os humanos. São apenas corpos densos que o Misterioso dotou com longas asas. Pura humanidade alada. Não são perfeitamente belos e santos, talvez um pouco pálidos e entediados, isso sim. Uma anja que já tinha cansado de dança chegou perto dele e lhe deu boas-vindas:

- O céu dança sua vida. Esteja em casa.

Olhou bem para a anja e viu que parecia uma mulher do norte, uma cabocla, mistura de negra com índia, de lábios grossos, cabelo escuro e olhos puxadinhos. Suas asas não eram perfeitamente brancas, tendiam mais para um ocre sutil. Outros anjos tinham as asas cor de chumbo; essas, em sua opinião, as mais garbosas. A anja-cabocla lhe olhava com certo interesse amedrontado, um ar de dissimulação. Quando conseguiu falar, perguntou:

- Mas o que é isso, afinal?

- Esse é o céu em festa. Sempre que sobe até nós uma alma verdadeiramente alegre, temos permissão do Misterioso para dançarmos e ouvirmos músicas populares. Lá pelo quinto dia, também poderemos beber vinho. Sim, porque a festa dura vinte dias e vinte noites terrestres. O Misterioso fica meio contrariado, porque diz que o vinho bebido assim para a festa, e não na sagrada comunhão, é homenagem aos deuses antigos, é Bacanal, entende? Mas trato é trato. Nós sustentamos as arquiteturas celestes, vigiamos o obscuro e a claridade do humano, levamos mensagens para o mundo inferior, passamos dias meditando diante de claridades, assistimos ao balé do Espírito que insiste em tremular sobre as águas por um velho hábito. Em troca de tudo, podemos fazer festas quando uma alma verdadeiramente alegre vem até nós. É a Lei.

Ele estava estarrecido. Um pouco com aquela história toda, com aqueles tratos, com o fato de ser ele a alma alegre. Mas, sobretudo, porque a anja-cabocla era uma perdição. Como podia uma anja ser assim tão sensual? Os lábios carnudos, o sotaque do norte, um hálito de cajá. Havia muitas coisas que, aquela altura, desejava saber, uma delas era se lhe seria permitido flertar com aquela anja, ou mesmo chegar a toca-la. Ali, era preciso reaprender tudo, até a arte do cortejar.

- Escuta, como é o teu nome ?

- É Lidiane.

- Ô Lidiane, não tá parecendo que essa festa é para mim não. Eu não estou entendendo nada, será que alguém pode me explicar alguma coisa ?

- Você sabe dançar ?

Não sabia. Mas notou que ali, sobre as nuvens, seus pés adquiriam uma sabedoria própria. A gafieira foi substituída por um  Fox Trot, percebeu que conseguia dar incríveis giros, viradas e twists. Dançou por muitas horas, parando apenas quando passava um avião muito perto da nuvem onde estava. Os anjos estavam acostumados, mas ele levava um enorme susto cada vez que isso acontecia. Quando anoiteceu, começaram a dançar um forró arrasta-pé e os ânimos se exaltaram. Sentiu que era hora de buscar alguma explicação. Notou que  um anjo bastante andrógino observava tudo de canto. Magro, negro, alto, cabelos cheios, começando a virar um black power  e traços bastante delicados, deixando em dúvida o gênero da criatura em questão. Decidiu puxar assunto.

-  Oi, você também não dança forró?

 - Na verdade danço muito bem, eu queria mesmo era falar com você.

Tinha a voz aguda e aveludada, mas ainda poderia apostar que era um rapaz. Sua pele era belíssima e reluzia sob a noite estrelada. Tinha olhos que cintilavam, como quem olha para algo perigoso. Sua asas eram alvas, usava uma camiseta preta de algodão e calças justas também pretas. Seus sapatos pareciam pantufas, só que mais modernas. O anjo continuou:

- Eu vi você dançando. É de fato uma alma alegre. Apenas os alegres conseguem dançar em meio à incompreensão.

- Mas eu não gosto de não entender. Você pode me explicar como é o céu? Por que eu estou aqui e como será minha estadia?

- Olhe, aos anjos é vedada a possibilidade de dizer verdades. Segundo as Misteriosas Leis, dizer verdades é um dos pecados capitais, nos  arremessaria direto ao submundo, para que ardêssemos, corpo e asa, na caldeira dos Contadores de Verdade.

- Mas então, terei que ficar aqui sem nada saber?

- O Misterioso, porém, tem misericórdia. Deixa que nos comuniquemos com o que há de mais puro no ser: o corpo.

Por essa ele não esperava. Não parecia do caráter de Deus considerar o corpo superior às verdades metafísicas, aquilo o surpreendia verdadeiramente. Mas ainda não entendia como faria para obter qualquer informação. Estava cansado, com fome, queria um pouco de privacidade e, além de tudo, começava a sentir os sinais de uma enxaqueca terrível.

- Mas, então, como você se comunica pelo corpo?

- Você pode tocar em mim, cada parte do meu corpo, e do seu também, tem um pensamento. Está nos Secretos Escritos que o ser humano se engana muito acreditando ser a cabeça o centro da razão. A razão é elétrica, sanguínea, corre na pele. Basta que você toque na parte do meu corpo que quiser que verá o que meu corpo pensa e sabe.

Aquilo mais parecia roteiro de pornochanchada. Um argumento metafísico, até sublime, mas que só pode funcionar com algum tipo de sacanagem. Sentia que aqueles anjos estavam tirando uma com a cara dele. Mas o anjo estendeu sua bela mão e, sem pensar muito, ele o tocou.  Foi como se seu corpo fosse tragado para dentro de uma esfera luminosa. Primeiro só conseguia enxergar a luz, aos poucos sua visão foi voltando ao normal. Quando pode olhar, viu que estava em outra nuvem, esta isolada e silenciosa. Olhava para baixo e, estranhamente, podia ver tanto à distância, como de perto, dependendo apenas do seu desejo de ver. De repente, soube. 

Entendeu a fragilidade dos mistérios além-vida. Como se levasse um choque, ele recebeu um lampejo revelador: os anjos são aquilo que querem ser. Em verdade, os anjos eram apenas homens e mulheres que acreditavam, em vida, que quando morressem virariam anjos. O Mistério, de fato, era a fé. Dependia da criatividade de cada mente fervorosa o seu destino na Eternidade. Mas “fé” ainda não era a palavra certa, mais do que crer, era preciso desejar. Os anjos eram aqueles que desejavam sê-lo.  Então a Lei secreta que rege o universo era o desejo. Daí uma certa androginia na maioria dos corpos angelicais, fruto desse desejo bruto que transborda o gênero como é entendido na Terra. Os Anjos, acima de tudo, eram os que desejavam para muito além do corpo. Queriam ser meio macho, meio fêmea. Queriam o dom impensado do vôo. Queriam a carne em brasa toda suspensa em penas. Queriam ser a própria medida do impossível.                                                                                      

Com outro choque, soube então porque não lhe coube esse destino: nunca em vida havia desejado ser anjo após a morte, bem pelo contrário, se sentia muito mais tentado a dar uma olhada no que se passada no submundo, nas obscuras e fervorosas câmeras do Outro.  Então, com a sensação de um súbito arremesso, viu-se em uma nuvem muito alta, de onde já não podia saber mais nada da Terra. Soube que estava muito perto do limite onde se pode chegar sem se queimar no Sol. Soube que estava só. Ali, o esclarecimento que havia obtido lhe parecia uma triste notícia. Se os homens viviam, após a morte, aquilo que em vida desejavam viver, por que é que ele estava ali naquele céu banal repleto de clichês? Nunquinha que em vida tinha desejado isso para si. Então, como se um soco no estômago lhe tirasse o fôlego, veio-lhe a resposta: o texto.              

Era de conhecimento do Misterioso, esse grande amante das letras, que ele havia deixado por escrito um longa descrição de como seria sua experiência no Além. Havia descrito, em um belo texto, longos acontecimentos em um céu como aquele: feito de nuvens, anjos e a notícia de um Deus ausente. Seus anjos eram burocratas falastrões que, por ora, apenas dançavam. Estava tudo planejado para que, em seguida, tivesse a oportunidade de viver o céu assim como ele havia desejado, a ponto de tê-lo criado por escrito. Sentiu então o fervor da raiva subindo-lhe pelo corpo: eles não haviam entendido nada!            

Acontece que seu desejo não era pelo céu, mas pelo texto! Seu texto, por sua vez, não era confissão de um desejo escuso, nem atestado de nenhuma fé. O sentido do texto se fazia na escritura e só texto poderia revelar o seu próprio mistério, quem o escreve pouco sabe sobre ele. O escritor só sabe de uma coisa: do irresistível chamado da escrita. Seus temas, seus argumentos, suas aporias nada mais são que vias  por onde percorrer para frequentar o texto.  Esse sim, seu verdadeiro interesse.                                                                                   

Quando voltou à nuvem, o anjo estava com os olhos arregalados pois havia compreendido que o Misterioso – pasmem – tinha cometido um engano. Não era aquele, pois, o destino-desejo daquele homem.  O anjo silenciosamente recolheu sua mão e pediu que ele o seguisse. Andaram na direção de uma pequena torre de pedras que, até então, não havia notado. Dentro dela, havia uma escada em formato caracol, que descia rumo a uma escuridão indevassável. O anjo disse:

- É preciso corrigir um engano. Seu destino é outro. Esse você encontrará quando descer por essas escadas.

Ele sentiu um novo  ânimo lhe afetar o corpo, mas também um certo medo. O que encontraria ali? O anjo continuou:

- Aqui é o paraíso dos escritores: a biblioteca. Nunca soube como é de fato, pois não é o meu. Olha, a verdade é que todos vamos ao paraíso depois da vida. Não importa se o sujeito deseja o inferno e vai para lá, pois em verdade aquele inferno é a sua delícia, seu ardor. Houve um erro, digamos, de interpretação de texto.  O Misterioso, através dos meus olhos, deu-se conta disso agora quando você acessou os Mistérios. Seu desejo não era o céu como escreveu, mas o próprio escrever. E é por isso que você vai ser transferido. Mas saiba que você conseguiu aquilo que talvez todos os escritores desejam: você confundiu a ordem perfeita do Mistério. Agora descerá em direção aos Mistérios da Biblioteca. Boa viagem.

Enquanto ia descendo as estreitas escadarias, sentiu um fervor de orgulho animando o peito: conseguira, trapaceara o próprio Deus. Sempre tinha tido admiração por João Grilo, esse astuto enganador, e agora havia superado mesmo a mais brilhante de suas façanhas. E não sabia bem como, só sabia que tinha sido assim. Antes de mergulhar no obscuro e encontrar seu definitivo e correto Paraíso, pode ouvir a Misteriosa Gargalhada. Deus ria de seu próprio engano. Quanto a ele, estava orgulhoso e animado, mas lamentara uma única coisa: não poder mais dançar com Lidiane. Ô Anja deliciosa! 

sábado, 15 de março de 2014

antes do tremor:  
com um mover de dentes anuncio aquele vento perigoso que te escalda rosto seco, que te invade olho toda cava. prevejo aquele terremoto que te treme o ponto cego, treme e  inunda a área surda. pra te salvar, deita aqui que te perturbo, que dou um golpe de pernas, um gole de bebida ardente e te deixo manso. pescaria nos lençóis: tua carne anzol, minha boca de peixe faminto e inconsequente; tua cara isca, meu olho fome. me pede um amor calmo que te cubro de café amargo,  beijos em plena plataforma, promessas difíceis, traições sem nome, noites de coluna rente ao chão. me pede uma calma quente que palpito como uma enxaqueca diante do sol ao meio-dia, que explodo junto ao êxtase das horas curvas, que fico calma feito a louça na pia cheia. manhã tarde e noite  pensando quando esse chão vai desabar, quando que vem o descanso da ira, a negação da fuga. te convenço a ficar te apresentando a anatomia da casa, o prazer do tédio, a embriaguez do medo.  


tremor: 
chega súbito. mas mansas são tua dores. desaba o corpo firme, escorre. o prazer pela dificuldade: tabuada do oito, saber não ser, preferir  gozo ao nome, preferir o riso à honra, esquemas geométricos, idiomas mortos. teu ofício é trair os símbolos, as associações infalíveis, a linguagem e seus sentidos obscuros. com teu corpo quebras os sentidos insondáveis, rompes com as verticalidades, fundas um solo de terra úmida sobre cada metafísica. não te salvo porque tua salvação seria se perder. não te guardo, que teu berço é tudo que oscila. o olho do furacão, a pálpebra cansada ou jubilosa, a língua úmida sabotando as regras do idioma. olho pro teu rosto em pleno espanto,  tudo em ti desaba e teu sorriso resta. 





segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014




- Tua pele é sombra, poça d’água no escuro. Pressinto teu cabelo emaranhado. Que cultivas entre os fios? Sementes, filtros de amor, ossos de reis assassinados, uma pirâmide com a Esfinge dentro? Quais perguntas enroladas nesses nós? Com tua testa sustentas a noite, o riso dos homens tontos, a alegria de todo deslize. Rasga o dia com teus dentes. Guardas uma onça dentro da tua boca tensa, anunciam insurreições os teus quadris. No peito, um milhão de pernas correndo com a alegria da revolta. Se coloco o ouvido rente a ti, escuto o farfalhar de asas, o mar revolto, o rugir da terra, um grito de pavor. Agitam minhas pernas pensar nas tuas afundando a terra escura. Queima a minha boca pensar na tua garganta aberta para o dia ainda tão sem fim. 

- Cultivo a rigidez de uma mulher diante do atirador de facas. Ando rija entre os porteiros de Copacabana, os entregadores de panfletos, as meninas lindas de vestidos leves. O medo do assédio, o medo da água na boca, dissimulada seriedade. Reajo alucinada aos homens que catam coisas do chão, vejo sobre eles o manto dos profetas, dos santos, dos espertos. Preciso me cuidar para não acabar como eles, só eu e a rua plena, que tremor.

- Eu conheço o chão, o corpo das esquinas. Eu tateio as lajotas, investigo os buracos mais prosaicos, me ponho estático diante de um degrau. Sou um dos teus profetas? Um desses homens que pernoitam sob os tuneis cumprindo desígnios divinos, esses tão miraculosos que só poderiam ser realizados por um homem puro: um sem casa, sem família, sem o alfabeto grudado na pele. Um homem desses que conseguem ler os mandamentos no pelo de um cão sarnento e são vigiados pelo eterno dogma dos céus tediosos. Toco teu braço e teus ossos recuam, tua pele oscila um pouco acima, como se estivesse desgrudada do esqueleto. Vagueias? Conjuras? Que guardas no vão entre a pele e o osso?

- O olho do homem que me criou. Suas mãos ásperas de lobo manso. Seus dentes alvíssimos arranhados de bicarbonato. Sua pele espessa. Junto desse, contabilizo os dois olhos que tenho na cara e assim enxergo o mundo. Do pai herdei um olho no avesso da pele, da mãe os ossos que se escondem. A pele que avança é mesmo minha, um tipo de dança que inventei, é assim: fecho os olhos no quarto escuro ou no meio de uma avenida louca, coloco as mãos em forma de prece bem rígidas rente ao rosto. Dentro da boca, a língua dança. Todo o resto denuncia um corpo penitente, até meio santo. Tipo desses que meditam enquanto o querosene aguarda o fósforo riscar. Mas minha invenção é a língua bailarina. Avança e recua em direção ao céu da boca, as gengivas, ao escuro da garganta. Quando danço, minha pele alteia, ganha uma vida toda dela. Meus ossos repousam dentro de um corpo que não cessa de nascer.

- É aqui, cheguei. Estou em casa. Obrigada pela companhia.

- Calma, não larga ainda do meu braço. Eu te guiei com os olhos, agora me leva um pouco pela escuridão. Vou fechar as pálpebras e você me diz alguma coisa da cegueira enquanto me leva até a porta tua casa. Um dois três e já

- Fôlego nenhum bastava. Quando eu era criança, sempre queria ir mais além do corpo. Os músculos ardiam, mas as pernas tinham sede de correria, de pontapés. A visão já esmaecia e eu conhecia o mundo feito um boi nervoso, desses que soltam para correr na multidão. O corpo da única mulher que olhei sabe como era? Comprido, espesso, negro, brilhante, violento. Tinha umas cicatrizes no quadril. A prima que se despia nos banhos de cachoeira, que deixava frestas milagrosas nas portas dos banheiros, a prima que cruzava as pernas lentamente. Quando ceguei era já tinha um filho e esperava outro. Eu me embolando para dentro e ela colocando uns corpos no mundo fora. Cegar foi assim, minha filha, o mundo de relance, o corpo de uma mulher linda e depois só a notícia dos nascimentos e das mortes. Vê só, cegar não foi muito diferente de viver. A minha casa é aqui.