quinta-feira, 25 de abril de 2013


Rosto coberto de avesso















Uma névoa quente

Num impulso, cortei minha franja com uma tesoura de cozinha. Vejo que fica torta e muito curta e me dá vontade de rir. Lembro-me da transgressão infantil de trancar-me no banheiro com uma tesoura e cortar livremente meu cabelo sem nenhum  critério, para o susto e apreensão da minha mãe. Uma pequena experiência libertadora de quem assume o corpo como seu, de quem faz um pequeno uso secreto e indevido de si. Semanas seguiam com a minha mãe passando gel para tentar domar a franja feia, usando grampos rentes à minha testa e me lembrando diariamente do gesto inconsequente. Aos vinte e três anos, sem precisar me esconder para deixar minha franja curta e torta, com o chuveiro quente ligado vejo minha imagem ficando cada vez mais embaçada no espelho e passo algum tempo diante da figura enevoada, encarando camadas do meu rosto antigo-atual se tornando borrão.
Banheiro de um hotel no Canadá. Ligo o chuveiro para entrar no banho e vejo, novamente, minha figura tornando-se mancha. Com a franja já reta e um pouco maior, mas ainda atingida pela fragilidade assumida pelo meu reflexo, sinto desejo de registrar o processo do meu corpo se encarando num espelho, primeiro nítido no espelho frio, depois esfumaçado pela superfície umedecida. Quem fotografa é a minha mãe, essa que agora me ajuda nesses pequenos manejos  incomuns  de mim mesma. Ela se posiciona ao meu lado, desligamos e religamos o chuveiro  quente e ela fotografa. O resultado são imagens monótonas, que quase não diferem. A passagem do tempo só é notada por pequenas alterações da minha postura e pelo espelho que, depois de muitos quadros, se torna completamente embaçado. Um rosto coberto de névoa quente, enquanto o corpo aguarda, permanece, do lado de cá.


Um rosto coberto de avesso

Passeando pela lojinha de um museu, encontro um livro de anatomia humana. Não resisto às imagens estranhas, belas, cortantes. Cresci em torno de livros como esses e mesmo de coisas como estas, já que – ainda criança – costumava ajudar minha mãe em sessões de macroscopia que consistiam em transcrever frases ditadas por ela enquanto ela fatiava órgãos a serem analisados. Ela provavelmente estava apenas querendo me ensinar o valor e a importância do trabalho. Mas o ato de escrever enquanto minha mãe manuseava vísceras deve ter me atingido de alguma maneira que não entendo, pois até hoje me interessa fazer uso dessas imagens de anatomia num contexto ficcional, inventivo. As imagens que mais me chamam a atenção no livro são parte de uma sequência de homens que abrem a própria barriga com as mãos para mostrar o interior. De algum modo, sinto que repito esse gesto. Quando produzo, sei que quero mostrar algum avesso, alguma entranha. Mas sinto que meu gesto difere, já que não é a entranha como um fim que me interessa, mas a invenção que posso fazer dela, a máscara que posso criar com essa matéria. A minha entranha não é uma verdade, mas uma criação. Esse é meu rosto coberto de avesso.


Cortes

Releio os textos que produzi nos primeiros meses de 2012, parte da disciplina de Processos Artísticos Contemporâneos.  A pergunta é: como torna-los um trabalho visual, uma proposição plástica? Os próprios textos contêm muitas chaves e pistas para essa elaboração. Volto-me, uma vez mais, para o papel. Imprimo os textos e separo trechos que me parecem, por alguma razão, mais indispensáveis que outros.  Num processo lento e difícil, colo – frase a frase- num caderno vermelho. Poderia escrever a mão, sinto que seria mais fácil e rápido – mas uso dessa técnica de sequestradores e de admiradores secretos, de criar uma caligrafia com letras já formadas.  Ainda à maneira de sequestradores e amantes platônicos sinto que há, nesse gesto, uma emoção que se revela numa tentativa torta de impessoalidade, de anonimato. A paixão revelada no tremular de uma mão que se implica, mais do nunca, no próprio gesto com o qual pretendia se anular. Mostrar-me através de uma tentativa de esconderijo, essa jogada que tantas vezes recorre.


Insisto

São gestos que me desafiam. Recortar colar recortar colar, não sabia que era tão difícil manusear a cola. Depois passo madrugadas desenhando pontos e outra cobrindo o branco papel de tinta preta. Encontro a forma desse trabalho através de procedimentos que me fazem querer desistir deles próprios, de exaustivos que são. Mas insisto. Quero descobrir uma paciência que não tenho, quero inventar uma habilidade que não possuo. Quero ser mais forte que eu.


Astronomias

Injustificável é essa minha atração por objetos de estudar o cosmos. Vou ao sebo e compro livros de astronomia em língua estranha. Passeio em planetários. Penso em comprar um telescópio e aponta-lo ao teto concreto do meu quarto. Existe algo nesse projeto insano de compreender os astros que me encanta. Um esforço em torno do imensurável. Uma técnica para não cegar, um modo de encarar espectros de astros, que dizem que nem estão mais lá. É o rigor diante do infinito que me cativa. São  as tentativa sinceras e precárias que me encantam. Entender a mim mesma, entender o que faço, apontar o astrolábio na minha direção, parece ser o mesmo indispensável e dispendioso esforço.


Gelo liso

Um pequeno aforismo de Nietzsche que , pra mim, fala do processo de criar. Criação, esse passeio num terreno de quedas, onde só se pode estar quem sabe criar o imprevisível do corpo, a dança desvairada dos afetos.  

02.08.2012


quinta-feira, 18 de abril de 2013







A exposição de Eduardo Berliner, presente na Sala A Contemporânea do CCBB-RJ no período de 26 de fevereiro a 31 de março, é composta de pinturas sobre tela, pinturas e desenhos sobre papel, objetos escultóricos, vídeos e fotografia. Em suas figurações, o artista apresenta um mundo sem contornos definidos, feito de súbitos lampejos e iminentes dissoluções.  Utiliza-se da tinta borrando limites, transbordando margens. Seus traços invadem, abruptamente, campos de cor. Com uma paleta que tende para tons escuros, constrói céus sombrios, cenários úmidos e focos de fogo. Quando o calor se mostra em cor é no vermelho do sangue ou das flores  que surgem sobre a estranha aridez que as fecunda.  A presença da figura humana recorre, envolta de paisagem bucólica ou na arquitetura da cidade.  Os atritos entre corpo e mundo são feitos de perfurações, capturas, dilaceramentos, pancadas. Pinceladas furiosas constroem a pele como uma massa de ocres, compondo corpos desmembrados e membros sem corpos, que anunciam presenças irreveladas. Nos contatos  entre  corpos, a violência não é óbvia, mostra-se aguda e pungente. Há também ternuras que persistem, sujeitos que testemunham a fragilidade de outros e, assim, também a própria finitude.



As figurações de Berliner apontam a uma intimidade estrangeira com o mundo. Do banal emerge o inesperado. Do conhecido, o susto. Nesse sentido, o artista persegue a gramática dos sonhos: o mais alheio produzido pelo profundamente pessoal.  O artista introduz nas suas imagens esse teor indesvendável do onírico, aquilo que, tendo parentesco com o conhecido, está fora da simbolização, estranho à linguagem e suas normativas. A arquitetura da cidade,  promovedora da inação, do tédio e da preguiça, pode ser o cenário da angústia e do fascínio. O estranho, em Berliner, faz corte com qualquer homogeneidade apaziguada. O artista coloca em questão o desenho de observação, apresentando-o como uma experiência de nascimento: o que nasce sempre tem a potência de perturbar o mundo. O imaginário da infância, que recorre em suas obras, pode ser tomado como um duplo do seu próprio gesto: a infância, assim como a obra, abre um rasgo que faz vacilar as estruturas das instituições. A verdade da produção poética e a verdade da infância são alheias às  medidas do saber constituído, são potentes de um modo diverso ao do poder como se conhece. Ambas chegam ao mundo com exigências de hospitalidade inconformadas com as medidas estabelecidas.  Eduardo Berliner trabalha a superfície como enigma, figura o reconhecível que produz mistério, peles que se dilaceram em aparatos protéticos e a infância como campo de tensões em que o surgimento do diverso acolhe o mundo e seus nascimentos súbitos.


* uma versão editada desse texto foi publicada na revista Dasartes n. 27 
** imagens: reprodução de obras de Eduardo Berliner