sexta-feira, 28 de setembro de 2012


                                               

lamarckianas é um trabalho no qual homenageio a ideia  de que por esforço consegue-se adquirir as características desejadas de um modo tão profundo a torna-las até mesmo transmissíveis. no trabalho, busquei estar em quatro meios diferentes para adquirir suas características.
o canto, e sua vocação para ser meio abertura e meio fechamento.
a solidão dançante das plantas.
a inquietude esquecida de um armário.
o a profundidade rasa de uma banheira.

















quarta-feira, 26 de setembro de 2012


sobre flores e eqüinos

rodrigo sérvulo

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começo a te inventar. seu nome agora é margarida, mas pode ser albertine, tamina, ou pode ter o nome das plantas, frutas ou animais. priscilla não é mais um nome próprio, priscilla é o que margarida inventa para si nos momentos de descuido, desenhando, pegando um ônibus, dançando, chorando, tomando café da manhã, tendo raivas, sorrindo; também - e agora principalmente - no momento do seu medo, quando o coração cria para si pernas e vira um cavalo descontrolado. margarida sabe que priscilla não é uma metáfora e que seu coração torna-se um cavalo descontrolado quando ela não sabe, quando ela apenas sente. e cá para nós, sentir o que seja sem saber nomear pode nos levar à uma certa loucura, que pode ser boa ou não. margarida sente muito intensamente esse palpitar do coração feito cavalo descontrolado e o atribui a priscilla. mas margarida não sabe ainda quem é priscilla e quando for saber, ambas serão outras coisas. mas priscilla sabe que sou eu, mas finge ser outras coisas para fazer o cavalo amansar. priscilla torna-se um campo vasto, cria rajadas de ventos calmos, torna-se uma estrela cadente, vai em busca de palavras novas, vai às memórias boas que habitam sua epiderme, cria uma fuga não-covarde para essas faíscas tristes que habita suas células, que são as células de margarida, e que também são minhas células. você, margarida, ainda não sabe o que fazer com priscilla. eu, que sou priscilla, já estou fazendo de mim uma outra coisa quando me atribuo você a margarida. já somos vários, não temos nome, nem importa tê-lo, porque a solidão tornou-se dualidão, com seus duplos - uma solidão povoada, que dá cambalhotas, que rói caminhos, que se junta às forças da minhas pernas ao caminhar, à cadência da sua voz ao falar, às sinfonias do pensamento, aos sentires nomeados e inomináveis que povoam-me e te povoa, povoando margarida porque priscilla porque eu também. margarida sabe que priscilla é um abraço que parece uma rede, um travesseiro também e não há nada de onírico nisso, margarida mesma sabe que em priscilla tudo é possível. até priscilla ser eu e fingir ser margarida quando finge ser isso: eu. margarida toma priscilla pelo braço, vive com ela não porque foi obrigada, mas porque a criou; eu também, que sou priscilla, habito margarida que às vezes é outra coisa. isso torna meu sentir confuso. sempre acho eu, priscilla, que na hora do banho margarida não sabe lhe dar com a água. ela sempre pensa que a água cai sobre o corpo dela, limpando-a. eu, priscilla, sinto que a água está com o meu corpo, limpando sabe-se lá o que, se limpa. desconfio das coisas que estão sobre, porque às vezes distante. prefiro com: com medo, com cavalos no peito, com alegrias também, com viagens nos bolsos transbordando o cotidiano, com respostas para coisas que ainda não se perguntou. priscilla sabe bem que margarida vive uma vida tão agitada. eu também vivo. todos nós vivemos. tudo está sendo agitado, tudo. inclusive você, priscilla, e você também margarida, que foi inventada por mim. você vai viajar e isso não quer dizer que você não possa ficar parada, no seu cantinho. (eu prefereria te chamar de um nome parecido com o de pássaro). margarida, você quer um cantinho para repousar na priscilla que te habita. dá trabalho está com priscilla, eu sei como é isso. priscilla é uma menina faceira e danada, quer respostas igual as crianças querem as perguntas. margarida, você ainda não sabe, mas você também sou eu. eu que inventei ser priscilla. você, priscilla, sabe que o cavalo em nosso peito, que sobe até o pescoço como um monte de folião batucando uma canção inaudível é uma crise que precisa de um antídodo. margarida quer encontros. eu também quero encontros, por isso forjo-os para não fugir covardemente de priscilla, nem de margarida. invento, primeiro, um monte de coisas, que não são metáforas, repito, são coisas tão reais que nos fazem perder o sono, nos fazem chorar, ter frio ou calor ou fome ou fastio. e também nos deixam aliviados, até com volições para invenções-outras. você, que é margarida, é priscilla sem respostas ainda para suas perguntas. essa é uma invenção turbulenta, mas se você perceber sua calma, seu aninhar-se, seu abraço, sua atenção a todos os movimentos das células, e minha dedicação nisso tudo, verás, margarida, que invento-lhe um novo ser para poder dividir contigo essa priscilla com seus sentires nomináveis ou inomináveis. invento-lhe em seu caderno onde-se-pode-tudo. é uma invenção que se precisa. você podia ser um queijo de manteiga, um chá-mate de limão bem azedo. são 00:55 minutos e daqui há pouco não são mais. preciso levar você, margarida, para ver o ocaso amanhã e assim saberás que o que priscilla sabe do ocaso. iremos falar de várias coisas, iremos confundir as coisas até que elas conquiste um novo tom, uma nova cor, bem clichê mesmo. essa nova cor, margarida, será a cor de priscilla, cor ação que dará novos tons ao seu coração. começo a te inventar e como toda invenção é da ordem do experimento e não do já-dado, já-feito, me pergunto qual é o efeito de tais pedaços entre seus dentes, entre seus cílios. toda invenção é sempre uma tentativa. essa foi uma tentativa de fazê-la perceber que margarida não é nada mais que minha vontade de estar no meio do seu ser tão de vontades ainda não ditas, de participar de seus pedaços, de forma inteira. e de tentar advinhá-la para te fazer uma invenção parecida com um acalanto, uma flor ou um travesseiro que se oferece a sua cabeça com uma franja mal-feita por você. aos poucos, tentarei forjar rédeas e uma carroça para domar esse cavalo e os outros possíveis desse ser tão com muitas veredas. invento-lhe também algo como uma cor de ambár. bárbara, como queiras, mas ambár.

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terça-feira, 25 de setembro de 2012


    Senhora das Tempestades
    Manuel Alegre

    Senhora das tempestades e dos mistérios originais
    quando tu chegas a terra treme do lado esquerdo
    trazes o terremoto a assombração as conjunções fatais
    e as vozes negras da noite Senhora do meu espanto e do meu medo.

    Senhora das marés vivas e das praias batidas pelo vento
    há uma lua do avesso quando chegas
    crepúsculos carregados de presságios e o lamento
    dos que morrem nos naufrágios Senhora das vozes negras.

    Senhora do vento norte com teu manto de sal e espuma
    nasce uma estrela cadente de chegares
    e há um poema escrito em páginas nenhuma
    quando caminhas sobre as águas Senhora dos sete mares.

    Conjugação de fogo e luz e no entanto eclipse
    trazes a linha magnética da minha vida Senhora da minha morte
    teu nome escreve-se na areia e é uma palavra que só Deus disse
    quando tu chegas começa a música Senhora do vento norte.

    Escreverei para ti o poema mais triste
    Senhora dos cabelos de alga onde se escondem as divindades
    quando me tocas há um país que não existe
    e um anjo poisa-me nos ombros Senhora das Tempestades.

    Senhora do sol do sul com que me cegas
    a terra toda treme nos meus músculos
    consonância dissonância Senhora das vozes negras
    coroada de todos os crepúsculos.

    Senhora da vida que passa e do sentido trágico
    do rio das vogais Senhora da litúrgica
    sibilação das consoantes com seu absurdo mágico
    de que não fica senão a breve música.

    Senhora do poema e da oculta fórmula da escrita
    alquimia de sons Senhora do vento norte
    que trazes a palavra nunca dita
    Senhora da minha vida Senhora da minha morte.

    Senhora dos pés de cabra e dos parágrafos proibidos
    que te disfarças de metáfora e de soprar marítimo
    Senhora que me dóis em todos os sentidos
    como um ritmo só ritmo como um ritmo.

    Batem as sílabas da noite na oclusão das coronárias
    Senhora da circulação que mata e ressuscita
    trazes o mar a chuva as procelárias
    batem as sílabas da noite e és tu a voz que dita.

    Batem os sons os signos os sinais
    trazes a festa e a despedida Senhora dos instantes
    fica o sentido trágico do rio das vogais
    o mágico passar das consoantes.

    Senhora nua deitada sobre o branco
    com tua rosa dos ventos e teu cruzeiro do sul
    nascem faunos com tridentes no teu flanco
    Senhora de branco deitada no azul.

    Senhora das águas transbordantes no cais de súbito vazio
    Senhora dos navegantes com teu astrolábio e tua errância
    teu rosto de sereia à proa de um navio
    tudo em ti é partida tudo em ti é distância.

    Senhora da hora solitária do entardecer
    ninguém sabe se chegas como graça ou como estigma
    onde tu moras começa o acontecer
    tudo em ti é surpresa Senhora do grande enigma.

    Tudo em ti é perder Senhora quantas vezes
    Setembro te levou para as metrópoles excessivas
    batem as sílabas do tempo no rolar dos meses
    tudo em ti é retorno Senhora das marés vivas.

    Senhora do vento com teu cavalo cor de acaso
    tua ternura e teu chicote sobre a tristeza e a agonia
    galopas no meu sangue com teu catéter chamado Pégaso
    e vais de vaso em vaso Senhora da arritmia.

    Tudo em ti é magia e tensão extrema
    Senhora dos teoremas e dos relâmpagos marinhos
    batem as sílabas da noite no coração do poema
    Senhora das tempestades e dos líquidos caminhos.

    Tudo em ti é milagre Senhora da energia
    quando tu chegas a terra treme e dançam as divindades
    batem as sílabas da noite e tudo é uma alquimia
    ao som do nome que só Deus sabe Senhora das tempestades.





segunda-feira, 17 de setembro de 2012




para Andreza (com os pés no coração), 2012

sábado, 15 de setembro de 2012



Diálogo 


Em uma biblioteca, estamos um de frente para o outro.[1]

Eu: Eu preciso desviar dessa mulher que me atravessa. Quem sou, nessa hora pálida, rodeada  pelo peso de um tempo antigo, procurando descrever o instante no momento  pleno de seu nascimento? É que as estratégias para me esvaziar são simples e me matam, faço um voto de silêncio, um voto de sede, um voto de jejum. Quero fazer surgir essa sobra: enquanto meu corpo não come, não fala, não bebe, o que pensa pelas mãos? Passar o dia na experiência de sentir o dia passar. Passar o dia me narrando o próprio dia.[2] Passar o dia sem saber como passa o dia. Jogar com o tempo, com as possibilidades do meu corpo e as possibilidades da escrita. Estou nessa biblioteca faz muito tempo e aqui ficarei por oito horas, o horário de um expediente de trabalho ou de uma boa noite de sono. Não farei nada além de olhar e escrever. Não sei como o tempo passa.

Ele: Esta invasão da vida pelo jogo tem como imediata consequência uma mudança e uma aceleração do tempo. “Em meio aos passatempos contínuos e divertimentos vários, as horas, os dias, as semanas, passavam num lampejo.[3]

Eu: Vim por um deslumbre simples, as lombadas dos livros antigos empilhadas, pontos dourados nos letreiros, formando uma constelação de pequenos sóis sobre um fundo geométrico. A claraboia-rosácea , de onde pende um lustre pesado e antigo, feito um astrolábio de gigantes.  Desejo de tocar as lombadas dos livros intocáveis, como um amante cuidadoso  que acaricia a amada enquanto sonha em arrancar-lhe um grito de temor. Com esta dupla paixão, violaria estes livros antigos, já meio devorados por outros apetites. Quem me acompanha ?

Ele: Os ajudantes . Alguém – não se sabe direito quem – os confiou para nós, e não é fácil livrar-se deles . Em suma, “não sabemos quem são”; talvez sejam  “enviados” do inimigo (o que explicaria por que insistem em ficar à espreita e espiar). Mesmo assim, assemelham-se a anjos, a mensageiros que desconhecem o conteúdo das cartas que devem entregar, mas cujo sorriso, cujo olhar e cujo modo de caminhar parecem uma mensagem. Metade gênios celestes, metade demônios. [4]

Eu: Nessa solidão, quando não me integro a nenhum fluxo de tempo compartilhado, quem são meus ajudantes? As camadas de um tempo que aqui se inscrevem, a inspiração soprada por um ser luminoso ou diabólico, que me faz permanecer aqui e escrever. Sinto que estar aqui é cumprir uma espécie de flagelo.  Ideia instigante, quase perigosa, essa – da escrita como penitência. A escritura é sempre associada à formação de um espírito crítico, à auto-libertação. E quando escrever é se testar? É botar tudo à prova, em estado de estremecimento? Escrever com o sangue[5] até sentir-se sem sangue. Narrar com o desespero de Sherazade, para não morrer. Já tinha pensado no gesto de Sherazade como o de alguém que cria para se salvar, mas e se ela narrava para se punir? Já que a morte viria, inevitável, narrar era adentrar na angustia e prolonga-la.

Ele: O dispositivo que realiza e regula a separação é o sacrifício.[6]

Eu:  Separada permaneço de tudo que o tempo tem de confortável. A via para estar nesse estado de exceção do corpo e da narrativa passa por um sacrifício. E eu me penitencio para aprender o que? A densidade do frio e do tempo, que todos os estados importam,  para me apropriar de um método e de um rigor, para me encontrar no tempo com todos os que escreveram para se machucar ou para se salvar. Para aprender a estar presente nesse instante iluminado.

Ele: A distância  -  e, ao mesmo tempo, a proximidade – que define a contemporaneidade tem o seu fundamento nessa proximidade com a origem, que em nenhum ponto pulsa com mais força do que no presente. [7]

Eu:  O tempo presente é o motivo de todo esse processo. Porque não é escrever sobre algo, mas escrever em algo. Então aqui vim, por sentir uma silenciosa atração por coisas mortas. E cada livro disposto nas estantes me parecer um túmulo, pelo qual sinto estranhas ternuras. O que faço aqui, finjo ?

Ele: Brincando, (...) desprende-se do tempo sagrado e o “esquece” no tempo humano.[8]


Dentro do rio, na areia e entre flores. [9]

Eu: Me acompanha essa mulher. Quem ela ? Há sempre essa que me atravessa ou me precede. Há sempre uma antiguidade, uma potência arcaica. A Mãe, a História, a Primeira, a que eu deveria ser e nunca sou. 

Ele: Aquilo com que brincam as crianças é a história.

Eu: Refaço gestos de mulheres que nunca fui. Enceno suas mortes. Mulheres que só existiram na pintura ou na literatura. Feito criança deslumbrada, brinco com a história? Brinco de embaralhar minha vida com outras vidas, e enceno mortes constantes, para evitar a minha própria, já que persistir numa existência fechada, sem atravessamentos, seria como morrer.  Será que todo mundo que escreve sente esse mesmo cansaço do eu ? Escrever para fugir de si e acabar sempre de volta a uma escura subjetividade. Há, diferente disso, o desejo de produzir peles, escrever para a superfície, para o que me roça, me espeta ou me faz cócegas. Escrever e dedicar a toda pele que não minha.

Ele: O poeta, enquanto contemporâneo, é essa fratura, é aquilo que impede o tempo de compor-se e, ao mesmo tempo, o sangue que deve suturar a quebra.[10]

Eu: Sinto que, com esse gesto de colocar meu corpo e minha voz à disposição de narrativas que me precedem,  crio distâncias e as encurto ao mesmo tempo. Morro – junto desses corpos – para sobreviver . Empresto meu rosto, minhas feições mais íntimas a essa alteridade que me escapa. Olho para essas mulheres com o rosto nu e o corpo disponível. Serão dessa ordem as narrativas? Uma morte ao contrário, nascida de um corpo que - a ela - sobreviveu.

Ele: (...) o rosto humano, que não conhece a nudez, porque sempre já está nu. [11]

Eu: Por isso talvez a potência das máscaras, dos semblantes. A tragédia colada às têmporas, à boca. O rosto se protege com sua disponibilidade, sua coragem é estar sempre despido e dissimular essa camada a menos com a constante invenção de si. O rosto se dispõe ao mundo. Mas por que esse gesto ficcional, essa necessidade de revestir minhas narrativas de uma camada de fabulação? Às vezes desconfio que me entrego à escrita por inabilidade para a vida propriamente dita, a vida dos corpos, a vida das ruas, a vida de todos os contatos. Mas intuo que a escrita possa ser esse  território - como um rosto -  em que se proteger não difere de se expor. Não sei bem qual o sentido desse gesto que enceno. Morrer três vezes, por três corpos diferentes, me salva do que?

Ele: Tudo o que agora nos aparece envilecido e de pouco valor é a fiança que deveremos resgatar no último dia, e quem nos guia para a salvação  é precisamente o companheiro que se perdeu pelo caminho. É seu rosto que reconhecemos nos anjo que toca a trombeta ou em quem, distraído, deixa cair das mãos o livro da vida. A réstia de luz que nasce em nossos defeitos e nossas pequenas baixezas não era senão a redenção. [12]

Eu: A escrita é uma espécie de Hades, território infernal. Um rio para se olhar refletido na morte.

Ele: O poeta, que deveria pagar a sua contemporaneidade com a vida, é aquele que deve manter fixo o olhar nos olhos do seu século-fera, soldar com o seu sangue o dorso quebrado do tempo.[13]

Eu: Como uma bailarina pesada demais, que luta contra a natureza, me debato na escritura. Escrever é sempre lutar contra uma natureza ? Escrever é torcer-se, é morrer de sono e manter os olhos abertos.

Ele: Fazer da fratura um lugar de um compromisso.[14]

Eu: Compromisso com o despedaçamento, essa ética do corpo que se cria.


No caminho para algum outro lugar.

Eu: Agora estamos a caminho de Valença, uma pequena cidade do interior. O que busco? Não sei. Reconheço apenas que me impulsionam essas imagens. Vê que lindas? São fotografias da década de 70, de quando minha mãe morava lá. Quero chegar em Valença e sentir o espaço, colocar meu corpo nessa experiência e produzir o que o contato com o meio me inspirar. O que fazem os homens, quando não tem utilidade prevista o que fazem?

Ele: Desperdiçam os seus bens, destroem suas heranças.[15]

Eu: Engraçado você falar de herança, porque, se parece que estou indo em busca dessa memória família para fortalecer esse imaginário herdado, não é disso que se trata. É muito mais um gesto de fratura: vou até lá macular o memorado na clave do vivido.

Ele: Somos todos devorados pela febre da história e devemos ao menos disso nos dar conta.[16]  

Eu: A febre, esse estado em que tudo fica agudo e fraco. Uma fraqueza até potente, que abre a mente para os desencadeamentos, os delírios. A história nos traga. Estar aqui, para ficar completamente só nesse lugar que desconheço, é efeito de ter sido tragada pela história da minha família, da minha origem. Se o impulso de me perder nessa investida, é ter sido tragada pela história, como fazer dessa paixão algo potente? Onde investir o meu olhar?

Ele: (...) Contemporâneo é aquele que recebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpela-lo, algo que, mais do que toda luz, dirige-se direta e singularmente a ele. Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provem do seu tempo.[17]

Eu: Quero olhar o escuro e molhar a minha pena nessa tinta. Engraçado não saber com o que me munir para vir até aqui. De um grande álbum de fotos, algumas imagens me chamaram mais atenção que outras. Trago comigo a descrição desses locais e tenho o desejo de encontra-los, para me fotografar em lugares onde minha mãe também se fotografou há trinta anos atrás. Estranha sensação de não saber bem o que importa. Vou abruptamente em direção ao trabalho sem saber o que é o trabalho, então tudo é excesso e nada é excesso, tudo é dispensável e nada é.

Ele: Também entre as coisas aparecem ajudantes. Todos conservamos certos objetos inúteis, metade lembrança, metade talismã. (...) Onde vão acabar tais objetos-ajudantes, testemunhos de um éden não-confessado ? Porventura não existe para eles um armazém, uma arca em que sejam recolhidos para a eternidade, como acontece com a genizah em que os hebreus conservaram os velhos livros ilegíveis, porque mesmo assim poderia estar escrito o nome de Deus ?[18]

Eu: Antes você falou da arte como compartimento destinado a recolher estes significantes instáveis que não pertencem propriamente nem à sincronia nem à diacronia, nem ao rito, nem ao jogo. O gesto artístico como este que acolhe resíduos inapreensíveis. De Valença, busco reter mais do que posso, com medo de perder esse mistério inacessível, talvez inexistente, que vim buscar aqui. A sensação que me acompanha quando vou embora é a de tristeza. Uma tristeza que me impulsiona, agora, a criar algo de potente com esses textos, essas imagens e essas experiências.

Ele: Os ajudantes são nossos desejos insatisfeitos, aqueles que não confessamos sequer a nós mesmos.[19]

Eu: Trata-se mais de escrever sobre o irrealizado, o intocado, do que sobre o vivido.

Ele: O que o perdido exige não é ser lembrado ou satisfeito, mas continuar presente em nós como esquecido, como perdido e, unicamente por isso, como inesquecível. [20]

Eu: Estive aqui para lembrar que nunca estive aqui.

Ele: Isso porque do inesquecível só é possível a paródia. O lugar do canto está vazio. Ao lado e ao redor atarefam-se os ajudantes, que preparam o Reino.[21]




[1] Essa biblioteca é o Real Gabinete Português de Leitura, onde realizei a performance Pedagogia da Escrita – prática nº 1. Sobre qual a me refiro nessa primeira parte.
[2] Frase da poeta Ana Cristina Cesar.
[3] AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2005. p.82
[4] AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 31.
[5] De tudo quanto se escreve, agrada-me apenas o que alguém escreve com o próprio sangue. Escreve com sangue; e aprenderás que sangue é espírito escreveu Nietzsche em A Gaia Ciência.
[6] AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 65.
[7] AGAMBEN, Giorgio; HONESKO, Vinícius Nicastro. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. P.65
[8] AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2005. p.85.
[9] Cenários referentes aos das imagens do trabalho Das Mortes Constantes, no qual refaço imagens da História da Arte: Ofélia de Milais, A Morte de Bara de David e Vênus Verticordia de Rossetti.
[10] AGAMBEN, Giorgio; HONESKO, Vinícius Nicastro. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. p.61.
[11] AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. p.78.
[12] AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. p.35.
[13] AGAMBEN, Giorgio; HONESKO, Vinícius Nicastro. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. p.60.
[14] AGAMBEN, Giorgio; HONESKO, Vinícius Nicastro. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. p.71.
[15] AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2005. p.83.
[16] AGAMBEN, Giorgio; HONESKO, Vinícius Nicastro. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. p.58.
[17] AGAMBEN, Giorgio; HONESKO, Vinícius Nicastro. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. p.64
 [18] AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. p.33.
[19] AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. p.35.
[20] AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. p.35.
[21] AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.  p.35.