domingo, 11 de setembro de 2011

Entre nossas mãos havia o pacto dos movimentos ternos e daqueles que tornam migalha o corpo da matéria espessa. Sustentávamos o peso do que não podia ser dito nas fundações levíssimas de um tédio brando, invadindo-nos com os instrumentos afiados de nosso afastamento. Eu respondia aos teus gestos curtos com um sorriso que era inteiro ânsia, como se coubesse no oco entre meus lábios a dor incomunicável da minha primeira fome. E, enquanto te olhava em silêncio, mantinha guardado na minha mudez o enigma que me devorava (dentro do meu ouvido, falharia tua voz?). No íntimo, sempre fui grata a tudo que me ofendia. E então te confessava meus tropeços, meu extravio. Te revelava a cartografia do meu excesso, minhas vozes sustenidas, minha santa inquisição, minha penugem desvairada, a minha dor sempre querida . E se persistíamos na errância de nossos dentes é porque estávamos muito interessados na prática do erro pela superfície dos corpos. Pois até que nossos lençóis virassem cárcere, eu persistiria te tocando. Nem tormentos nem carícias me fariam renunciar teus olhos sempre tão remotos, sempre recriados, feitos da tua beleza recém-nascida, da tua beleza desusada. Eu te mostrava meu rosto bizantino, meu corpo de serpente, esperando que transgredisses teu recolhimento iluminado, teu desespero terno, e me habitasses - que sou tua ruína, que sou teu universo inteiro no primeiro dia da criação.
Remetentes surdos

Ao céu que arranhei.

Teu rosto, o céu depois da chuva. Luz calma e antiga por entre as nuvens carregadas. Milagre do nascimento, o teu corpo amanhecido. Tua luminescência, aridez, palidez das tuas unhas. A brancura do teu rosto, céu furado por agulhas. Nudez da tua orelha, adorno do teu corpo cândido; ausência de teus enfeites, pele do teu corpo obsceno. Ameaçar o céu com perigosas armas, tua pele clara onde sobrevivem tuas feridas. Amo tuas dores, céu machucado por raios violentos. Tuas lesões fundamentais, teu olhar solitário, tua solidez eólica. Desejo teu corpo leve de caminhos para o ar, tuas tempestades súbitas, teus ouvidos rasos. Invado tua pele fechada, os teus poros sufocados. E amo tua boca que cala, o teu silêncio noturno,a extensão da noite feita da tua espera arcaica. Teu rosto atemporal, a eternidade que herdaste em tua pele. Tuas verdades inscritas nas feridas, e tuas feridas que nunca se fecham, que só caminham para dentro. Te ter, explícita, te ter, crua, te ter, lânguida, e depois te ver sumir. Esmaecer, vapor. Anoitecer, solstício.
Remetentes surdos

Às quedas.

Desmedido dos meus passos, proteção vazia dos meus saltos. Paraísos gasosos em que esbarro, vácuos estelares. Montes helenos fundados sobre o ar. Vos amo, porque sois matéria rarefeita, inexplicáveis corpos. Porque, se piso em vós, despenco. Porque vos exibis, corpos densos, virgens de toda mão, inocentes de qualquer toque. Perdoai, quedas minhas, se vos ofendo com o peso de meus pés, que anseiam tolamente pelo solo, que desprezam tais terrenos impalpáveis, que recusam o caos ligeiro destes raptos aéreos. Pois não há em que segurar quando a única solidez que me acompanha é a dureza de que sou feita, e quando tenho como chão somente o terreno dos meus pés. Carregar a ti, vertigem, como constante ameaça e generosa sorte. Temer-vos, quedas, e amar-vos, por tocardes meu corpo endurecido de tanto chão com a suave pele de vossas verticais mãos.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

do diário da Anaïs Nin


Coisas rodopiando. É noite e fui forte o dia inteiro.

No táxi como Ana Maria, olhei para seu rosto jovem e me perguntei: qual é o maior presente que posso dar a ela, para iluminar sua vida, para fazer o mundo tremer por ela?

Sabedoria e sensualidade - estas serão minhas asas

Hugh está sereno, estudando astrologia. Uma serenidade linda - inalcançável. Eu lhe trouxe um compasso de presente. Desenho círculos para ele. Gosto de admirar seu conhecimento, a mim impenetrável.

Hoje meus nervos estão em frangalhos. Mas sou indomável.

tudo o que me importa neste momento é a alegria suprema de girar junto com a Terra e morrer ébria, morrer enquanto giro em vez de morrer afastada, vendo a Terra girar em cima da minha mesa como um desses globos de papelão à venda na Printemps por 120 francos. Sem iluminação. Assim é mais caro. Quero ser a iluminação no globo e a dinamite que explode na máquina da gráfica um segundo antes de colocarem o preço na página. Quando a terra gira, minhas pernas se abrem para a lava que escorre e meu cérebro congela no Ártico - ou vice-versa -, mas tenho que girar, e minhas pernas sempre se abrirão , mesmo nas regiões do sol da meia-noite, pois não espero pela noite - não posso esperar pela noite - não quero perder um ritmo sequer dessa trajetória, uma única batida desse ritmo.

talvez eu não passe de uma escritora, pois enquanto tomava o café-da-manhã eu perdi o interesse em todos eles e desejei ardentemente estar em Louveciennes com meu diário. Cheguei em casa após dormir umas poucas horas, depois fui para a cama, depois escrevi. Almocei, dormi como um soldado, me masturbei e voltei a escrever.

não quero seus êxtases - os meus são como axinita, cuja borda cristalina é como a borda de um machado.

a necessidade de tragédia é uma necessidade profunda. É a descida rumo às minas de carvão, à descoberta. Deixo a água me afundar para chegar à Atlântida. Um hábito antigo. Minha chumbada. Minha grilhagem. Minha bússola. Meu barômetro. Isso me faz rir.

Tudo cintila dentro de mim, como se alguém apertasse com os dedos sobre meus olhos fechados.

Uma noite ele olha para o meu rosto e diz que naquele instante eu pareço egípcia, escura, invencível, obcecada

Eu queria deitar no fundo do oceano, viver lá au fond des choses, toujours au found.

Vou adiante em alta velocidade, vou causar sofrimento, ninguém pode me acorrentar, sou uma força, e o dia todo sinto que algo me empurra, empurra. Encho páginas e mais páginas com minha febre

Eu também vou deixar uma cicatriz no mundo.

Para o inferno, para o inferno com o equilíbrio! Quebro os vidros; quero queimar, mesmo que eu mesma me estilhace.

O desejo de iluminar o caos; de criar a partir do caos; de erguer as massas; de escapar aos mistérios, à incerteza, à inércia; de provocar e conquistar a passividade - esse foram os motivos da dor e alegria mais profundas.

Caminho como um acendedor de lampiões; empurro navios rumo ao mar aberto, descubro objetos preciosos; removo a pátina de pinturas escurecidas; afino, ajusto, desvelo, moldo, exponho, conflagro, apóio, sustenho, inspiro; planto sementes; prescruto cavernas; decifro hieróglifos; leio o olhar dos outros - sozinha - sozinha em meu ofício. Marte com um manto vermelho-sangue e bracelete de aço solar.

Não sou contra nada, pois tenho meu modo particular de usar tudo, de transformar tudo em alimento.

Quando quebrei a tigela de cristal e a água derramou, será que eu estava destruindo uma vida artificial, irreal, contida, deixando a vida fluir? Catástrofe e correnteza.

Vou ficar feliz se as coisas explodirem. É o certo.

Acredito em magia, em milagres! Tudo é tão misterioso e belo, fico sem palavras. A vida me deixa sem palavras.

Mas o absoluto, o absoluto me assombra.