sábado, 10 de dezembro de 2011

"Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui percebendo que estava percebendo as coisas. Minha liberdade então se intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade. Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. Soube também que se tudo isso “fosse mesmo” o que eu sentia – e não possivelmente um equívoco de sentimento – que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma pequenez se deixaria acarinhar, e sem nenhum compromisso comigo. Ser-Lhe-ia aceitável a intimidade com que eu fazia carinho. O sentimento era novo para mim, mas muito certo, e não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser. Sei que se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo e reverência. Mas nunca tinham me falado de carinho maternal por Ele. E assim como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre.
E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo, de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo desmesurado de ratos.
Toda trêmula, consegui continuar a viver. Toda perplexa continuei a andar, com a boca infantilizada pela surpresa. Tentei cortar a conexão entre os dois fatos: o que eu sentira minutos antes e o rato. Mas era inútil. Pelo menos a contigüidade ligava-os. Os dois fatos tinham ilogicamente um nexo. Espantava-me que um rato tivesse sido o meu contraponto. E a revolta de súbito me tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que estava Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que dentro de tudo há o sangue. Não só não esqueço o sangue de dentro como eu o admiro e o quero, sou demais o sangue para esquecer o sangue, e para mim a palavra espiritual não tem sentido, e nem a palavra terrena tem sentido. Não era preciso ter jogado na minha cara tão nua um rato. Não naquele instante. Bem poderia ter sido levado em conta o pavor que desde pequena me alucina e persegue, os ratos já riram de mim, no passado do mundo os ratos já me devoraram com pressa e raiva. Então era assim?, eu andando pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a me mostrar o seu rato? A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus era bruto. Andando com o coração fechado, minha decepção era tão inconsolável como só em criança fui decepcionada. Continuei andando, procurava esquecer. Mas só me ocorria a vingança. Mas que vingança poderia eu contra um Deus Todo-Poderoso, contra um Deus que até com um rato esmagado poderia me esmagar? Minha vulnerabilidade de criatura só. Na minha vontade de vingança nem ao menos eu podia encará-Lo, pois eu não sabia onde é que Ele mais estava, qual seria a coisa onde Ele mais estava e que eu, olhando com raiva essa coisa, eu O visse? no rato? naquela janela? nas pedras do chão? Em mim é que Ele não estava mais. Em mim é que eu não O via mais.
Então a vingança dos fracos me ocorreu: ah, é assim? pois então não guardarei segredo, e vou contar. Sei que é ignóbil ter entrado na intimidade de Alguém, e depois contar os segredos, mas vou contar – não conte, só por carinho não conte, guarde para você mesma as vergonhas Dele – mas vou contar, sim, vou espalhar isso que me aconteceu, dessa vez não vai ficar por isso mesmo, vou contar o que Ele fez, vou estragar a Sua reputação.
… mas quem sabe, foi porque o mundo também é rato, e eu tinha pensado que já estava pronta para o rato também. Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria – e não o que é. É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa. É porque sou muito possessiva e então me foi perguntado com alguma ironia se eu também queria o rato para mim. É porque só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar um rato na mão. Sei que nunca poderei pegar num rato sem morrer de minha pior morte. Então, pois, que eu use o magnificat que entoa às cegas sobre o que não se sabe nem vê. E que eu use o formalismo que me afasta. Porque o formalismo não tem ferido a minha simplicidade, e sim o meu orgulho, pois é pelo orgulho de ter nascido que me sinto tão íntima do mundo, mas este mundo que eu ainda extraí de mim de um grito mudo. Porque o rato existe tanto quanto eu, e talvez nem eu nem o rato sejamos para ser vistos por nós mesmos, a distância nos iguala. Talvez eu tenha que aceitar antes de mais nada esta minha natureza que quer a morte de um rato. Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só porque contive os meus crimes, eu me acho de amor inocente. Talvez eu não possa olhar o rato enquanto não olhar sem lividez esta minha alma que é apenas contida. Talvez eu tenha que chamar de “mundo” esse meu modo de ser um pouco de tudo. Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho de minha natureza? Enquanto eu imaginar que “Deus” é bom só porque eu sou ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me acusar. Eu, que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu contrário, e ao meu contrário quero chamar de Deus. Eu, que jamais me habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escandalizasse. Porque eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou tão mais inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim mesma com uma terra menos violenta que eu. Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe."

C.L.

Que anseio das coisas retidas. Te seguro contra o corpo, te escavo, te mantenho. E depois invento uma distância qualquer. Te imagino ausente, para te reimaginar inteiro. Tu longe de mim, antes de mim. Te tanger e te precisar indo embora, guardar na ausência a certeza viva do retorno. Justo eu que não quero a certeza, que desejo o limite da arrebentação. Eu que misturo a claridade da paz com o próprio escuro da noite.

Hoje ventou, e eu lembrei das nossas madrugadas. Tu chegavas sempre tão depois e eu te oferecia um pouco de tudo aquilo que eu tinha. Tu respondias com teu sono inquieto, com o corpo relutante. E eu te tocava, como quem toca a si mesmo: a mãos sôfregas e distraídas. A incidência ingênua de quem se olha com espanto a cada repetição do reflexo. Por isso, o véu no rosto, os pés plantados no chão. Esperando pelo silêncio dos encontros, prevendo a despedida delicada. Quantos corpos um corpo, quantas vidas sobrepostas, entrelaçadas, se tocando e se doendo.

Eram noites do teu olhar contido, teu riso quase seco e quase doce. Noites de encontros azuis, as vidas de distância entre nós. Tua pele, meu abrigo, um recorte dos meus dias no teu corpo. Inscrição das horas, escritura do vento os teus sinais. Era como dedilhar uma camada de tempo e depois assistir, muda, ao recorte das horas. E então era preciso cerrar os olhos, fechar as portas. Pensar que tu me acostumaste comigo e que tenho medo do que em ti não me lembra mais de mim. Dormir abraçada ao reflexo turvo, ao eco surdo, inexistente. E a cada vez que te vejo esmaecido, lembro do escuro dos teus olhos. Teus olhos impenetráveis, que apontam só pra fora. A cada gesto teu na direção oposta, uma vontade terna de ir a ti numa noite clara e velar teu sono. Soprar no teu ouvido de vigília. E depois ir embora no meio da noite, encostando muito pouco os pés no chão . Deixando sobre a mesa uma carta que comece dizendo: minha entrega, minha amarra, minha violência-terna. ficção-minha, reinvenção de mim. meu contrário, minha ausência, parte de mim que me transborda,


03/04/08

terça-feira, 6 de dezembro de 2011


eu quero ser o teu brinquedo urgente. quero que teus olhos me usem para renascer. te dou minha pele para ser teu berço. te peço a tua, para ser o riso do meu corpo. eu te daria tudo que é vivo e me rodeia. te ofereço as feras, os bandos, os seres leves da minha alma, que se aderem à minha pele só para te arranhar. quero ser a fauna que te acolhe e despedaça, encontrar as mãos finas do sagrado em nossas horas rotas. rir contigo das horas calculáveis, fundar instantes coagulados, sentir cravada no corpo a vida muda do tempo. sou devota de nossas noturnas invenções, minha fé são as nossas palavras embriagadas de prazer e sono. essa noite quero dormir no fundo da fome dos teus olhos.




sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Homenagem a uma casa esvaziada









sexta-feira, 18 de novembro de 2011


Te espantas com a obsessão maciça do cansaço. Obsessão de fabricar um objeto extraordinário no meio da noite. Perco os dons todos no meio da noite. (Ana C.)


quinta-feira, 27 de outubro de 2011

"Sou sua, tempo rei, faça-me contradições fecundas" (Julia Panadés)


viria a noite e seus mormaços, dormiria com inimigos e com cigarros acesos esquecidos. a noite era essa pequena infância, tão próxima do antes de nascer. quando anoitecia morria de fome, ficava faminta e insone e só se curava em peles ásperas. tinha a alma náutica, corpo de mariposa, amava lâmpadas, farois, toda luz que fere a escuridão. quando se viam, nadavam um no outro , às vezes seus dentes se faziam âncoras. fechava os olhos e pensava que aceitava a vida, que viesse e a derrubasse, ela beberia de muitos vinhos e se salvaria em muitos olhos. por enquanto o instante dissolvia qualquer fim no escuro mais fundo das horas.

domingo, 11 de setembro de 2011

Entre nossas mãos havia o pacto dos movimentos ternos e daqueles que tornam migalha o corpo da matéria espessa. Sustentávamos o peso do que não podia ser dito nas fundações levíssimas de um tédio brando, invadindo-nos com os instrumentos afiados de nosso afastamento. Eu respondia aos teus gestos curtos com um sorriso que era inteiro ânsia, como se coubesse no oco entre meus lábios a dor incomunicável da minha primeira fome. E, enquanto te olhava em silêncio, mantinha guardado na minha mudez o enigma que me devorava (dentro do meu ouvido, falharia tua voz?). No íntimo, sempre fui grata a tudo que me ofendia. E então te confessava meus tropeços, meu extravio. Te revelava a cartografia do meu excesso, minhas vozes sustenidas, minha santa inquisição, minha penugem desvairada, a minha dor sempre querida . E se persistíamos na errância de nossos dentes é porque estávamos muito interessados na prática do erro pela superfície dos corpos. Pois até que nossos lençóis virassem cárcere, eu persistiria te tocando. Nem tormentos nem carícias me fariam renunciar teus olhos sempre tão remotos, sempre recriados, feitos da tua beleza recém-nascida, da tua beleza desusada. Eu te mostrava meu rosto bizantino, meu corpo de serpente, esperando que transgredisses teu recolhimento iluminado, teu desespero terno, e me habitasses - que sou tua ruína, que sou teu universo inteiro no primeiro dia da criação.
Remetentes surdos

Ao céu que arranhei.

Teu rosto, o céu depois da chuva. Luz calma e antiga por entre as nuvens carregadas. Milagre do nascimento, o teu corpo amanhecido. Tua luminescência, aridez, palidez das tuas unhas. A brancura do teu rosto, céu furado por agulhas. Nudez da tua orelha, adorno do teu corpo cândido; ausência de teus enfeites, pele do teu corpo obsceno. Ameaçar o céu com perigosas armas, tua pele clara onde sobrevivem tuas feridas. Amo tuas dores, céu machucado por raios violentos. Tuas lesões fundamentais, teu olhar solitário, tua solidez eólica. Desejo teu corpo leve de caminhos para o ar, tuas tempestades súbitas, teus ouvidos rasos. Invado tua pele fechada, os teus poros sufocados. E amo tua boca que cala, o teu silêncio noturno,a extensão da noite feita da tua espera arcaica. Teu rosto atemporal, a eternidade que herdaste em tua pele. Tuas verdades inscritas nas feridas, e tuas feridas que nunca se fecham, que só caminham para dentro. Te ter, explícita, te ter, crua, te ter, lânguida, e depois te ver sumir. Esmaecer, vapor. Anoitecer, solstício.
Remetentes surdos

Às quedas.

Desmedido dos meus passos, proteção vazia dos meus saltos. Paraísos gasosos em que esbarro, vácuos estelares. Montes helenos fundados sobre o ar. Vos amo, porque sois matéria rarefeita, inexplicáveis corpos. Porque, se piso em vós, despenco. Porque vos exibis, corpos densos, virgens de toda mão, inocentes de qualquer toque. Perdoai, quedas minhas, se vos ofendo com o peso de meus pés, que anseiam tolamente pelo solo, que desprezam tais terrenos impalpáveis, que recusam o caos ligeiro destes raptos aéreos. Pois não há em que segurar quando a única solidez que me acompanha é a dureza de que sou feita, e quando tenho como chão somente o terreno dos meus pés. Carregar a ti, vertigem, como constante ameaça e generosa sorte. Temer-vos, quedas, e amar-vos, por tocardes meu corpo endurecido de tanto chão com a suave pele de vossas verticais mãos.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

do diário da Anaïs Nin


Coisas rodopiando. É noite e fui forte o dia inteiro.

No táxi como Ana Maria, olhei para seu rosto jovem e me perguntei: qual é o maior presente que posso dar a ela, para iluminar sua vida, para fazer o mundo tremer por ela?

Sabedoria e sensualidade - estas serão minhas asas

Hugh está sereno, estudando astrologia. Uma serenidade linda - inalcançável. Eu lhe trouxe um compasso de presente. Desenho círculos para ele. Gosto de admirar seu conhecimento, a mim impenetrável.

Hoje meus nervos estão em frangalhos. Mas sou indomável.

tudo o que me importa neste momento é a alegria suprema de girar junto com a Terra e morrer ébria, morrer enquanto giro em vez de morrer afastada, vendo a Terra girar em cima da minha mesa como um desses globos de papelão à venda na Printemps por 120 francos. Sem iluminação. Assim é mais caro. Quero ser a iluminação no globo e a dinamite que explode na máquina da gráfica um segundo antes de colocarem o preço na página. Quando a terra gira, minhas pernas se abrem para a lava que escorre e meu cérebro congela no Ártico - ou vice-versa -, mas tenho que girar, e minhas pernas sempre se abrirão , mesmo nas regiões do sol da meia-noite, pois não espero pela noite - não posso esperar pela noite - não quero perder um ritmo sequer dessa trajetória, uma única batida desse ritmo.

talvez eu não passe de uma escritora, pois enquanto tomava o café-da-manhã eu perdi o interesse em todos eles e desejei ardentemente estar em Louveciennes com meu diário. Cheguei em casa após dormir umas poucas horas, depois fui para a cama, depois escrevi. Almocei, dormi como um soldado, me masturbei e voltei a escrever.

não quero seus êxtases - os meus são como axinita, cuja borda cristalina é como a borda de um machado.

a necessidade de tragédia é uma necessidade profunda. É a descida rumo às minas de carvão, à descoberta. Deixo a água me afundar para chegar à Atlântida. Um hábito antigo. Minha chumbada. Minha grilhagem. Minha bússola. Meu barômetro. Isso me faz rir.

Tudo cintila dentro de mim, como se alguém apertasse com os dedos sobre meus olhos fechados.

Uma noite ele olha para o meu rosto e diz que naquele instante eu pareço egípcia, escura, invencível, obcecada

Eu queria deitar no fundo do oceano, viver lá au fond des choses, toujours au found.

Vou adiante em alta velocidade, vou causar sofrimento, ninguém pode me acorrentar, sou uma força, e o dia todo sinto que algo me empurra, empurra. Encho páginas e mais páginas com minha febre

Eu também vou deixar uma cicatriz no mundo.

Para o inferno, para o inferno com o equilíbrio! Quebro os vidros; quero queimar, mesmo que eu mesma me estilhace.

O desejo de iluminar o caos; de criar a partir do caos; de erguer as massas; de escapar aos mistérios, à incerteza, à inércia; de provocar e conquistar a passividade - esse foram os motivos da dor e alegria mais profundas.

Caminho como um acendedor de lampiões; empurro navios rumo ao mar aberto, descubro objetos preciosos; removo a pátina de pinturas escurecidas; afino, ajusto, desvelo, moldo, exponho, conflagro, apóio, sustenho, inspiro; planto sementes; prescruto cavernas; decifro hieróglifos; leio o olhar dos outros - sozinha - sozinha em meu ofício. Marte com um manto vermelho-sangue e bracelete de aço solar.

Não sou contra nada, pois tenho meu modo particular de usar tudo, de transformar tudo em alimento.

Quando quebrei a tigela de cristal e a água derramou, será que eu estava destruindo uma vida artificial, irreal, contida, deixando a vida fluir? Catástrofe e correnteza.

Vou ficar feliz se as coisas explodirem. É o certo.

Acredito em magia, em milagres! Tudo é tão misterioso e belo, fico sem palavras. A vida me deixa sem palavras.

Mas o absoluto, o absoluto me assombra.


terça-feira, 30 de agosto de 2011

meu deus, se eu tiver que pedir uma coisa só, me livra primeiro dessa vontade de falar de mim. depois, me faz mais pedra, mais ponta, mais sal. arranca de mim esse medo, me livra da ternura vazia, espanta a leveza de mim. ou então transforma minha solidão em pano, e me envolve, me cobre, me veste: faz do meu medo uma pele. e, se eu merecer, me dá olhos escuros, me mostra um silêncio mais fundo, me ensina outra alegria, uma que não seja tão parecida com a dor. eu queria também amar coisas mais fáceis, se for da minha sina e do meu merecimento. queria menos livros e mais janelas. um vestido com menos pano, um corpo com menos receio de ser só corpo. um corpo mais físico, entende. queria também sentir um amor mais justo, um de querer menos, de aceitar mais. me ampara também quando eu tiver medo de ser rasa, me conforta quando eu for bruta e sem jeito. me afasta de tanta perplexidade, meu deus. me faz simples, me faz chão, me faz terra. faz de mim também um lugar bom para o choro, me dá uma linha mais firme, um bordado mais limpo. e, se ainda puder, coloca mais do mundo em mim, me tira um pouco do prazer da solidão e do amor pela estranheza, me dá mais vontade de sentar à mesa, de sorrir sem felicidade, de dar as mãos por gentileza. por fim, eu peço uma vida mais limpa, mais centrada em si mesma, sem tanto medo do que não existe, sem tanta paixão pelo ar.






2007

terça-feira, 23 de agosto de 2011

(de 2008)


Hora um - Contra todas as paredes
Não disponho de nenhum sigilo, pratico catarses pela avenida intransigente. Casualidade: temo pelas horas que virão. Ainda ontem me pus de frente ao nada - as horas pesadas, meu corpo retraído, procurando evita-lo de todas as maneiras. Ele não se engana quando diz que não me entende. Não existe entendimento, há apenas o vasto e terrível reconhecimento de si. Eu o penso inteiro, mas breve caio na lucidez da sua desaparição. Faço de seu olho meu mais grave espelho, e me improviso - feia, pouca, gasta. Então eu visto vermelho, mostro que sou carne, borro os olhos com nanquim. Feito mulher rasgada, de risinho estridente e olhar de sortilégio, me mostro explícita ao mundo que não toco na busca de algum olhar, algum roçar, algum atingimento que me ponha de frente a isso que procuro todo instante: o lampejo de um encontro

Hora dois - Inunda
Quando me toca, me alegram seus impulsos. Me alegra suas mãos serem breves, sua fala ser febril. Quero o desatar de suas palavras despencando no meu corpo, recebe-lo impulso , edema, lampejo. Quero sua presença se fazendo instante, sem receio da mácula, sem cansaço do olhar. Quero permanecer, porque na demora de nossas peles nos cabemos. Sem atar, sem estancar, sem inquirir. Quero o indizível se fazendo pele. Romper o contorno, que é esforço; desabar o fora, que é mentira. Anseio por me desfazer de rouquidões, abandonar trincamentos, dissolver acúmulos. Ser inteira e lúcida, na medida do meu próprio gesto; sem que calar seja o meu esforço, sem que a espera de ti seja o maior exílio de mim.

Hora três - Em algum lugar escuro
Isolamento voluntário. Mantenho as portas lacradas, evito os espaços que me tomem. Batizo catástrofes: abandono é caminhada, perda é deslize, ferimento é abertura, ruína é distração.

Hora quatro - À beira
Distendo o dia entre o livro e a janela. Evito o instante em que te perco, sempre alongando o momento que te deixarei. Quando numa praça num quarto no abismo de um dia qualquer eu te direi meu amor eu fui tão boa meu amor eu te dei tudo mas eu errei tanto eu não sabia que amor não era oferta eu não pensava que amor fosse silêncio fosse segurar o pranto que amor maior entre nós dois seria não te conhecer pois se me agarro a teu ressoar é porque me encanto com o que se esvai sabe aquele livro que me deste meu amor as páginas que tantas vezes se tocaram agora se esgotam e o perfume que imprimiste nelas agora é só a passagem do ar amor eu preciso tanto ser deixada por que é que não me deixas meu amor eu tenho carregado essas malas há tanto tempo esperando a manhã quando irias me dizer que eu não servia mais pra cuidar da tua casa alimentar teus filhos ocupar tua cama mas olha bem o que aconteceu tu não me reparas nem quando estou prestes nem quando estou quase nem mesmo quando eu estou à beira repara meu amor eu vou embora eu não volto mais repara bem meu amor eu nunca mais vou te olhar

Hora cinco - Eu nunca mais vou te olhar
Primeira vez que lhe disse 'eu me entrego', ele ficou assustado, achando que lhe oferecia algo como a submissão interessada de quem amacia a voz e pede esmolas. Eu me entrego, eu disse, e ele ouviu 'toma conta de mim'. Quis lhe dizer que quem se entrega, se entrega por dentro, exatamente porque não aceita o controle externo a si. Mas ele ficou parado, me olhando com uns olhos pesados. Seus olhos mais escuros e mais antigos.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

"E um dia virá, sim, um dia virá em mim a capacidade tão vermelha e afirmativa quanto clara e suave, um dia o que eu fizer será cegamente seguramente inconscientemente, pisando em mim, na minha verdade, tão integralmente lançada no que fizer que serei incapaz de falar, sobretudo um dia virá em que todo meu movimento será criação, nascimento, eu romperei todos os nãos que existem dentro de mim, provarei a mim mesma que nada há a temer, que tudo o que eu for será sempre onde haja uma mulher com meu princípio, erguerei dentro de mim o que sou um dia, a um gesto meu minhas vagas se levantarão poderosas, água pura submergindo a dúvida, a consciência, eu serei forte como a alma de um animal e quando eu falar serão palavras não pensadas e lentas, não levemente sentidas, não cheias de vontade de humanidade, não o passado corroendo o futuro! O que eu disser soará fatal e inteiro! Não haverá nenhum espaço dentro de mim para eu saber que existe o tempo, os homens, as dimensões, não haverá nenhum espaço dentro de mim para notar sequer que estarei criando instante por instante, não instante por instante: sempre fundido, porque então viverei, só então viverei maior do que na infância, serei brutal e malfeita como uma pedra, serei leve e vaga como o que se sente e não se entende, me ultrapassarei em ondas, ah, Deus, e que tudo venha e caia sobre mim, até a incompreensão de mim mesma em certos momentos brancos porque basta me cumprir e então nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo.”


C.L.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Dume

"Antinous
(movimento de árvores)

são questões
terça-feira eu prefiro você bem
louco
minha palavra & nada que você acredita
poderá acontecer: ostras olhos injetados Hegel
durma com suas violetas do subúrbio
e a cidade tosse como
um índio com febre
São Paulo acorda em suas coxas
docemente
banho quente com vapor
em espiral flocos de
samambaias eróticas
assim que você espreguiçar eu estarei
sangrando"
(Piva)
Porque sobrevivo a ti
te aceito todo
por toda a parte, em mim
és fúria e zelo
inquilina, a vida
arde arranha
e é bom
te reconheço
o mistério, tão contrário à culpa
e entendo
nosso amor telepático
tu tomando banho
eu na cama
colchão no chão
dor de ouvido
mudez que invejo
a linguagem é uma doença
que pode me curar
isso entendi quando me machuquei
contra a comunhão entre mim e o mundo
pesado e findo
o infinito era mentira
porque só importava o que era quente pulsante
muito perto de cansar

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Amor Monstro

para Jarina Menezes


Menina da terra rachada, dos corpos rachados, do nome de galho e de santa de altar. Mulher-maga, devota dos bichos, da lama, do sal. A vida te arde, te despedaça, te empurra para as beiras, para os limite de um corpo de pé. Quando deitavas, tinhas saudade do mar? Mulher-horizonte, tua pele marcada de sonos profundos, o mosqueteiro leve sobre a cama, tua pele pesando na mesa, teus olhos queimados de sol. Os filhos te saindo do corpo, a carne dos teus filhos sobrando no mundo, teu amor-rabisco, teu fôlego de apneias, de boca a boca com os sustos. Teus dedos sempre prontos a dar de beber aos apetites escuros do mundo, tuas mãos doloridas de tanto gestar. Fazer tudo nascer de dentro do nada, esse é teu dom. Víscera escancarada, te escondes na ferida aberta. Fazes da falta uma sobra, de um corpo arrebentado, um arquipélago de peles em uma cama de magma. Teus gestos-golpe se propagam, tuas mãos se revestem de mundo. Tens parentesco com todas coisas que sentem. Não escondes teus remendos, teus veios profundos, fazes dos espaços ocos tuas catedrais, o estômago é um templo, a boca uma cova profunda, onde tudo descansa e renasce, mastigado e feroz. Nascer foi tua maior lição: vida é movimento pra fora, expulsão, força que não se faz sozinho, nostalgia da víscera, é gritar para poder respirar. Nascer é inevitável. E teus desenhos, inevitáveis, nasciam. E nascias junto deles, nascias mil vezes por ano, celebravas todas tuas idades em cada desenho teu. Todos os teus corpos, tuas peles lisas e tuas peles tortas, todas juntas tramadas em cada figura nascida. E teus seres te escapavam pelos poros, elefantes reis dinossauros gatos mitologias sereias pássaros vermes monstros minotauros pétalas intestinos corvos nuvens infernos lábios, tua pele peneira de poros imensos, por onde tudo pode passar. Teus seres monstruosos, feito da beleza das coisas sem avesso, que tem as vísceras como pele. Teus monstros são como os gestos de amor, coisa toda pulsante que sangra, vive e não se estanca, que é a carne dando cambalhotas em si mesma, convulsa sem sair do lugar. Teus monstros transladam, revolucionam, orbitam, estáticos, são carne toda pedra, fibras de fóssil, coração pulsante de um cometa cadente.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

pequena escura fina
rabisca muros de giz
dança na banheira, água quente e suja
faz buracos nos colchões
perfura canos pregando quadros
corpo espesso e calmo
cores seculares
o sol por dentro
nenhum conceito
só miolo de pão
sem cascas
conjuntos de dormir
respiração forte
dias turvos
céu gelado
a mão dela
linha da vida
a mais funda

terça-feira, 31 de maio de 2011

viagem ao centro da terra

a febre constante que te queima, o corpo que só se abranda em brasa . mil mundos em órbita transladando em nossos pés. mercúrio vênus terra marte saturno netuno plutão não serão suficientes, e criaremos um novo mundo, relativo somente às nossas mãos. recobrirei tuas paredes do meu nome, esse que nunca te contei, de quando fui batizada na língua das pedras e ganhei essa pele de lava fria. eu te darei novos olhos, uns que me enxergassem de longe, dissolvida no limo das superfícies antigas. eu ganharei novos olhos, escuros como o céu curvo que tocamos com a língua e bagunçamos com com os dedos. e meus novos olhos serão lentos e próprios para as manhãs, olhos embriagados pela luz, entorpecidos pela melancolia das madrugadas rápidas. olhos escuros, que serão eles próprios o fundo triste do meu sono leve. que nos ofenda nosso desejo de silenciosos riscos, caminhadas sem destino, pois só nos solos do desvio é que nos botamos de pé.

crua

sentir o chão mais duro e frio, cantar as notas mais difíceis, recusar o destino de qualquer esconderijo. crua como uma nudez mais profunda que a da pele, exposição mais íntima que qualquer uma previsível. porque olhar bem fundo é o único jeito de olhar e estar disponível é a única forma de estar forte. a crueza é essa força: força do corpo que se encara e se convida a duelar. quero estar sempre próxima de tudo que em mim é incontenção. ter o instinto como substância que embriaga os meus poros-taça. crua feito bicho, feito a terra que se move e arrebenta, feito a carne que não esqueço que sou escondida em tanta pele.

dentro

o esculpido se faz por fora, na remoção, na limpeza. o fóssil é se faz por dentro, é cicatriz na terra, existência marcada pela força. o dentro é a potência da lava, da carnalidade do mundo - origem sempre renovada, sempre pronta a irromper subitamente. destruição maravilhosa: que nascer seja sempre deixar-se marcar pela navalha afiada de tudo que é súbito.


segunda-feira, 23 de maio de 2011

"A EPOPÉIA DO AMOR COMEÇA NA CAMA COM O LENÇÓIS
DESARRUMADOS FEITO CAMPO DE BATALHA)

é ali que eu começo a nascer para a madrugada & suas
vertigens onde você meu amor se enrosca em
meu coração paranóico de veludo verde & as delícias de continentes
alaranjados dormem em seu rosto de pérolas turvas oh tambores do amor
sem parar rumo às tempestades PLANETÁRIAS & suas
cachoeiras tristes & pesadas como lágrimas
gosto de gostar & a tv da alma amanhece bêbada & tenta
dizer alguma coisa"

(Roberto Piva)



tenta dizer como quem luta como quem pesca pra se livrar de si flutuando numa lâmina de água escura, que a revelação é que toda revelação é só textura que o absoluto é sempre efeito de corpos partidos, que toda essa potência é potência de invenção. que o relativo sempre tem seu fundo intocado. que o intocável sempre cabe na boca e tem gosto de terra amarga. é noite, e eu sempre volto ao Eclesiaste.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

"assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;

qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueleto

de um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso
de homem que se ferisse
contra seus próprios ossos."


(j.c.m.n.)



segunda-feira, 2 de maio de 2011

Água Viva

"escrevo redondo, enovelado e tépido, mas às vezes frígido como os instantes frescos, água do riacho que treme sempre por si mesma

escrevo por acrobáticas e aéreas piruetas - escrevo por profundamente querer falar

sei que meu olhar deve ser o de uma pessoa primitiva que se entrega toda ao mundo, primitiva como os deuses que só admitem vastamente o bem e o mal e não querem conhecer o bem enovelado como em cabelos no mal, mal que é o bom

Não ter nascido bicho é minha secreta nostalgia

entro lentamente na escritura (...) é um mundo emaranhado de cipós, sílabas, madressilvas, cores e palavras - limiar de entrada de ancestral caverna que é o útero do mundo e dele vou nascer

estremece em mim o mundo

Venho do longe - de uma pesada ancestralidade. Eu que venho da dor de viver. E não a quero mais. Quero a vibração do alegre

existo e de um modo febril. Que febre: conseguirei um dia parar de viver? ai de mim, que tanto morro. Sigo o tortuoso caminho das raízes, rebentando a terra, tenho por dom a paixão, na queimada de tronco seco contorço-me às labaredas

minha selvagem intuição de mim mesma

Esta minha capacidade de viver o que é redondo e amplo - cerco-me por plantas carnívoras e animais legendários, tudo banhado pela tosca e esquerda luz de um sexo mítico. Vou adiante de modo intuitivo e sem procurar uma idéia: sou orgânica. E não me indago sobre os meus motivos. Mergulho na quase dor uma intensa alegria - e para me enfeitar nascem entre os meus cabelos folhas e ramagens

o que te escrevo é de fogo com os olhos em brasa

O que há de bárbaro em mim procura o bárbaro cruel fora de mim. Vejo em claros e escuros os rostos das pessoas que vacilam às chamas da fogueira. Sou árvore que arde com duro prazer. Só uma doçura me possui: a conivência com o mundo

o mais profundo pensamento é um coração batendo

Não vê que isto aqui é como filho nascendo? Dói. Dor é vida exacerbada. O processo dói. Vir-a-ser é uma lenta e lenta dor boa. É o espreguiçamento amplo até onde a pessoa pode se esticar. E o sangue agradece. Respiro, respiro.

e antes de mais nada te escrevo dura escritura"


C.L.

sábado, 16 de abril de 2011

Área Surda

Ao teu: salva-vidas, despir. Não me tolero, lençois, nós, nós, nós, pontes moles, paisagem antiga borrada no meu rosto. Me dobra em três, me derruba, me tira a voz até as pernas. Toda promessa perjura, me arrumo até me desfazer. Alma inconstante, carne murta. Primeiro: meu corpo inteiro, meio descabido, mas todo. Felicidade, tapar os olhos. Depois: capa de super-heroi. Depois: mãos dadas. Depois: abraço acéfalo. Depois: engolir facas. Emaranhados de luz contra cantos escuros, te sentir em todos os cantos, todas as dobras. Fragilidade fundante, espadachins, espasmos. Castelos de frágeis fossos, me ofusca. Parede, chão e cama, pedras, águas turvas. Grito, grito, grito, não posso gritar senão te acordo. Tontura, ar pesado, gastar-se por dentro. Olho perdido, pequeno frio. Dente por dente, animais selvagens, azulejaria, planta carnívora que morre de fome. Repensar a medida do possível, desfazer incorreções. Talvez o nosso maior heroísmo fosse o perdão. Então: perdoemos todas as coisas. Míope de fronteiras. Os espaços amplos para se alargar uma vida mansa. Centro da Terra, tua garganta. Teu jeito de franzir a testa quando bate o sol. Ver o rosto da realidade no olho da face sem forma.

segunda-feira, 11 de abril de 2011




Quis evitar e vinda e vim. Meu corpo, a casa, o segredo de coisa alguma. Ar guardado, onde foi soprado o grande mistério dos espaços e dos tempos e ninguém ouviu. Violência súbita, inércia maculada, espaços contornados, densa espera. Não sei o que fazer com esse excesso que me é dado. Que se crie um império, que se inventem todas as coisas, que se curvem os súditos de poeira e luz. O vulto que me escolta. Graciosamente: dança. Um balé surdo de um vulto que se entrega. Por que se revela? Acho que teu nome próprio é o silêncio que ofereces e teu corpo de peles leves é o que afirmas de ti. Danças porque sem a invenção da tua presença deixas de existir? Danças porque sem a invenção da tua presença deixas de existir. Vou embora. Sei que, com a minha partida, tu também poderás ir. Dorme fundo, meu fantasma mudo, e então serás livre, meu fantasma eu.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

"Amar a Deus através da destruição de Tróia e de Cartago, e sem consolo. O amor não é consolo, é luz. " (Simone Weil)

Ouve, que já não te escrevo mais. Que minha voz é da noite escura e minhas mãos são dos mistérios fundos: o ar gelado e branco, a pele fina do meu corpo quieto. Que hoje meu repouso é a minha recusa, meu conforto é minha insubmissão. Ouve, que já não me olhas mais, que não compreendi nada da vida, que não entendi nada de mim. Que dou passos de contradição e meu alívio único será a manhã e sua potência de invadir frestas. Hoje eu permaneço em uma margem fina entre o todo e os pedaços, entre os olhos fechados do sim e a náusea do não, entre a concavidade do céu e a tua pura carne. Hoje sou o eixo e a espuma, sou coluna e linfa. Tantas velas, tantas genuflexões, tantas memórias ofertadas, tantos esvaziamentos em troca de um instante de suspensão desses contrários, um instante de tocar a pura vida, essa intensidade plena, esse sufoco que respira. Mas a minha ânsia de vida é também a minha vontade de inferno. Meus pés plantados no chão, meu corpo de lama e sal, carregam meus olhos que ardem em fogo. Minha paixão pelo todo é a minha disposição para o rasgo, e o rasgo nunca tarda. Ouve, que te escrevo desde um buraco de poucas luzes conhecidas, que te escrevo da minha cama estreita, meu quarto cosmos, meu corpo texto, minha noite vida. Hoje as dores do dia se deitam mansamente no meu colo, olhos fechados de anjos tortos, dores ferrão, que me envenenam e não me tomam. Antes uma atrocidade, antes esse teto devastado, esse chão rachado. Antes meu corpo inteiro dentro do perigo. Mas a tarefa é conviver com essas mãos que me mantêm acordada e não me abraçam, essas mãos dolorosas da minha existência rasa, do meu ser improvisado, que comunga com a face escura do mundo pela ponta afiada das unhas. Sabes dessas minhas horas que são tuas? Não sabes. Nem ouves essa minha voz que te fecundaria e te faria uns filhos-ruído, uma prole de espasmos. Eu escrevo como quem conjura, como quem confessa, como quem comete, eu te escrevo como te amaria, como te seduziria na demora, como te arranharia de tanta paz desperdiçada. Hoje eu sou um corpo imenso, de imensas dobras, secretos líquidos e suores fortes. Hoje sou um corpo mínimo, que nada olha, nada toca. Sou um corpo maquiado, corpo escama, traidor e mártir de mim mesma, carne víbora, pele cruz. Hoje te sorrio ternamente e te apunhalo e te assassino e te exalto. Ouve, tu que és tantos, e todas, e o único, de um só dia, de toda a vida. Ouve, que minha voz é minha força e meu fracasso, que te evoco já tão lúcida, que já nunca soube quem tu és.

terça-feira, 15 de março de 2011

mínima, dispersa, epistolar



te debruças no abismo, te apoias no secreto, lapso de pedras, muda geologia. o vazio te elege, não lutas. Prometeu abandonado pela Águia, te cansas do teu corpo costurado. uma vertigem, um tropeço qualquer que te arrebente. eu me embalei em um furioso berço. onde se respira pela pele, a sede não se aplaca na água, a transparência cobre o fundo. sabes da doçura de arder de sede no olho da tempestade?

mínimas ciências, clarões precários, iluminações corpóreas. como seres que conjuram a própria luz, bestas abissais e estranhos insetos, construimos nossos dias, abrindo caminhos com o corpo, forjando o sentido e o nome de tudo que nos precede, inventando o nome impronunciável de Deus. amplitude de mistério, nada é desprovido da estranha alquimia de ser mundo.

não morremos. a onda se desfaz em naufrágio, nossos corpos deitam entre escombros. eu acordo primeiro e te acaricio o rosto inerte experimentando tua pele-braile. e as nossas mantas úmidas testemunham um amor faminto. em honra ao abençoado esquecimento de nós mesmos, fincamos cruzes nos solos não arados e rezamos nossas missas iletradas. no princípio era o verbo, e nosso verbo era tocar.



domingo, 27 de fevereiro de 2011

olhos como flores negras
meu amor navegando agreste
10058 metros acima
primeira travessia perigosa
meu medo, eu te agradeço
nenhuma inundação
descanso aos pés da torre
sozinha no museu
folheando livros, escolhendo pela capa
não entendo palavra
noites de surdez
penso que assaltaram minha casa, penso em impérios decadentes, penso que tua pele é labirinto
durmo com o cabelo úmido
nem lembro mais do rosto dele
escalo escombros
cartografia adulterada
me visto para casar
choro entre estátuas, desenho pedras, sinto dor
sístole e diástole ante o mar
porcelana chinesa, expedições polares
visito barcos, tenho pesadelos, navego
vous êtes tout excusé de votre oubli
estudo a fuga
99 dias depois: 3 verões num mesmo ano, mais cabelo, deixei passar, perdi o medo das coisas óbvias, vertigem e excitação de não saber, roçar hermetismos com a pele, ceticismo sensível, vulgaridade rara, hoje isso sou eu, sexo na claridade, tornar o passo lento numa chuva fina que até dói
o que te soa simples
pra mim é
quente
feito fogo

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

não é nada mais que minha vontade de estar no meio do seu ser tão de vontades ainda não ditas, de participar de seus pedaços, de forma inteira. e de tentar advinhá-la para te fazer uma invenção parecida com um acalanto, uma flor ou um travesseiro que se oferece a sua cabeça com uma franja mal-feita por você. aos poucos, tentarei forjar rédeas e uma carroça para domar esse cavalo e os outros possíveis desse ser tão com muitas veredas. invento-lhe também algo como uma cor de ambár. bárbara, como queiras, mas ambár. tudo existindo em uma ordem inabalável e sempre à beira de qualquer mudança aguda, Deus como uma suave rigidez, manifestações divinas sem nos darmos conta. mas ainda estávamos em tua cama, e pode ser que seja tarde para te pedir: vem me assustar, vem me botar de cara com a minha falta de tamanho, vem saudar o Deus que há no centro de todos os ímpetos, vem promover a alquimia, vem assumir teu corpo, vem deixar a conquista do amor para ser o que há de mais radical no amor, vem criar teu corpo, vem praticar jogos de renúncia, vem me desfazer da minha intenção de controlar, vem me dar a intenção de sustentar presença no mais profundo do instante. talvez acabe nesse exato instante em que tua ternura se aproxima de mim, recobrindo o mais afiado dos meus ossos, podia ser então que eu fosse jovem e tu mais jovem ainda, deitados no jardim da casa dos meus pais, amando-nos silenciosos, apontando constelações inexistentes no céu, podíamos ser tolos, desajeitados, amores-eternos de uma noite, naquela mesma noite em que me pedirias em casamento, me oferecendo um anel feito de papel de coisa doce e eu te aceitaria de todas as formas que se pode aceitar. quando tu me perguntaste por que eu olhava tão triste enquanto te ouvia falar, eu então sorri dizendo do céu assim meio laranja, para não ter que dizer que o que me fazia triste na verdade era tua beleza me atingir em tantos sentidos, me comover de tantas maneiras, que te olhar era tocar no desperdício, naquela coisa que sempre faltava ou sobrava, o que de ti eu não tocava com extremidade qualquer. quando nós saímos de mãos dadas, não, as mãos quase se tocando, fiquei parada, esperando, esperando que dissesses logo que tinhas feito um plano para nós, que querias dormir comigo naquela noite e nas seguintes, que morrias de vontade de ter um filho meu, que te tenho pelo jeito como vou embora e te deixo sozinho, pelo meu jeito de ser tão sem dono, por estar tão agradecida, tão agradecida, meu Deus. perguntaste se eu me lembrava do começo, sim – respondi – aquela manhã, teu cabelo solto, misturado a fiapos de luz. hoje fez sol e depois choveu e o céu ficou meio laranja, eu acho então que começou aqui quando eu encarei minhas próprias mãos para ter coragem e só então tocar a tua. nós dois, coisas inteiras rasgadas enfim

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011





















a constância geométrica dos corpos instáveis

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Arte Bruta

Salivo de desejo, queria um mosteiro Beneditino para testar minha alma rala
Queria me embrenhar na seca, tomar pinga, distender meus braços latinos no pulso de um atabaque
Dançar de colant em Pernambuco
Colar um Bosch na parede com dupla face
Não evito gargalhada em meio ao pânico
Coberta de uma pele crua e emplumada
Arrisco o vazio da mente em meditações dolorosas
Como que para me salvar do mais simples de mim
Sincretismos fervorosos, lacuna apaixonada
Em nome do Sagrado Nada Entender, procuro o esquecimento, os dias letivos e devidamente ocupados. Desempenho a nudez solitária, experimento dormências e silenciosas núpcias. Me dissolvo de amor, tropeço na barra das calças, soluço há mais de uma semana. Canso-me da sedução pelo enigma, do leviano jogo de ausências, olhares cifrados, palavras gentis. Então fico perversa, altiva, etérea, louca de vontade de ir pra casa chorar um pranto quente, dissertando sobre todas as minhas misérias, entregando-me ao grande cansaço. Vem, amor antigo, tuas faces são metades de romã, na transparência do véu, teu pescoço é como a torre de Davi, construída com parapeitos, da qual pendem mil escuros e armaduras de todos os heróis, teu corpo é tormenta, mar aberto, ventania. Ou então deixa pra lá.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Unhas curtas, que já nem te marcam mais. Um dia inteiro, sala e quarto, no exercício renovado de uma espera antiga. Agrado-me até me machucar, devoro o que aparece, me esvazio em qualquer cheia. Depois tento os vestidos floridos, mutilações, caminhada em prece, amar a Deus através das quedas.

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Tento o desvio, a cachaça, o sublime das linhas certas e tortas. Enceno a Sagrada Vagabunda, depois a ressentida imaculada, esqueço tudo, me coço até sangrar. Recebo tua mão sobre meu ombro como uma improvável oferta, arrependimento fundo, sonho com hieróglifos.

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Aglomero omissões com pressentimentos, descasco enigmas, me explicito e não.

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O risco como um norte.

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Nenhum orgulho aos meus pais, nenhum hábito educado, nenhum orgasmo solitário.

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Tomo banho de chuva, comungo, levo choques.

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Luto pela causa operária

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Tento a dissimulação. Invejo a bailarina contundida. Sofro de fomes matinais

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Arrumo a minha farmacinha. Experiências telecinéticas.

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Um tédio que me santifica. Pontas duplas.

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Arqueologia sem perfuração.

sábado, 29 de janeiro de 2011




















fazer para saber que pode ser desfeito

sábado, 8 de janeiro de 2011

Liturgia

Maré, enchente, sagrado movimento. Tudo que é vivo é dança, densidade, tempo, pequenos enredados de equilíbrio e queda. Dizer: sim. Eu sou o mundo em movimento, em minhas domésticas translações, natureza transmutada, regenerada pelo peso. Gratidão pela impermanência, surgimento súbito. Eu te reconheço, encontro breve, pungência frágil, e me encontro ao te soltar. Reverência a tudo que há de agramatical, sabedoria sem léxico, é a ti que recorro no escuro da minha noite . Peço a benção dos Deuses analfabetos. Metafísica orgânica, nenhum motivo que não os musculares. Comer pela minha fome, amar pelo meu desejo de amor, dormir pelo meu cansaço. Nenhuma estrutura maior que a sede, das verdades, só as famintas. Disponibilidade de sentir, a generosidade do instante. Acendo velas, queimo mirra, faço colares de contas, conchas e flores, construo altares efêmeros, ídolos de murta, jejuo, busco o grande silêncio, pratico retiros e êxtases solitários sobre almofadas. Urgência, apetite e cãibra como forma de oração.