sexta-feira, 29 de outubro de 2010

da correspondência de Ana C. :

Fico vacilante e boba todas as vezes: ora muda, ora prolixa. Acho sempre que tenho que produzir something witty and brilliant, no teu tom certo.

Me canso muito facilmente, indócil às agruras do trabalho. É sempre assim? As praias continuam congestionando. Desisti de gostar de homens bonitinhos. Ai, que impaciência!

Por que são certas iras tão embaladoras?

Vou diariamente a pubs variados com os colombianos e o italiano que moram na casinha. Às vezes o Giancarlo faz uma macarronada para os quatro e a gente se procura com ansiedade.

Aqui tem papelarias do diabo. Compro apontadores de pura fascinação. As próximas metas de consumo são o edredom e a bota de sete léguas, claro.

Vai ver eu vou driblar dois invernos e segurar a barra. Altas viagens espirituais é o que vale. Faço cálculos e cronogramas, tento yoga, manuais de psicologia e rituais variados como anotar sonhos, aperfeiçoar diários e souflés de palmito, aprender inglês com o Nabokov.

Ou: quero virar uma moça daquelas, que ninguém oprime não, baby. Muito fera e com aquelas idéias simpáticas de casamento, não tomo bem as histórias de Pariscope & suas androginias. Não quero ser moderna (trendy, que gracinha) nem mestre em sofrimentos.

Não esqueça o feminismo (o não babaca!).

Acho que estou fazendo uma tentativa de aterrizar (dúvida ortográfica), de abdicar da minha obsessão de falar sempre dos conteúdos latentes, do que está por trás - é uma deseja boba, um jeito de afastar as pessoas. Substituo a interpretação pelo envolvimento ( não é verdade - eu tento fazer isso).

Mas a questão é mais o susto, as tremuras.

Escreve se te formigarem os dedos - só assim vale a pena.

A coisa mais pública que pode existir: a neurose. Escapa por todos os poros.

Não consigo explicar minha ternura, então fico seca, retinta, quase folclórica.

Fiquei dividida entre a dor, a ressaca e uma saudadezinha aguda, coisa fina e ao mesmo tempo bruta - parece que é fundamental gostar de um homem a partir de uma base muito bruta, no sentido de matéria bruta, alguma coisa te diz que o teu corpo gosta de estar com aquela pessoa, seja mais ou menos perto.

Às vezes acho que estou louca mansa, mas não, é apenas um brinquedo.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Interessa-me pensar a matéria biográfica como fábula. Esquize confessional. Gênese de si mesmo, e o si mesmo como ficção. Imaginar uma vida, vivê-la. Abandonar a subjetividade como estrutura e pensar uma subjetividade fraturada, estatelada, transtornada pelo acaso. Buscar em mim, na minha incontornável imanência, uma transcendência inventada, rápida, provisória. Auto-assombro, auto-desconhecimento, íntima inquietação, fratura exposta. Não quero falar de mim, quero me inventar na minha fala. Confissão como dispositivo de fabulação. A profunda verdade do absurdo. Como se a redenção fosse a invenção da mácula. E a mácula me interessa, como o ato torto, desvairado que é. Confessar o impensável, para cometê-lo. Propor-me a estados de desproteção. Investigar-me a partir de ações para as quais me sinta despreparada e desprevenida. A imagem e o relato como espólio, resto desejado de um combate indizível, porque vão. É preciso exercitar a rebelião. Recusar-se a ficar preso a regras. Recusar o próprio sucesso. Recusar-se a se repetir. Criar a minha catástrofe. Estetizar a vertigem, amar o inevitável, transformar o imprevisto em destino querido. Exercer a vontade retroativamente, transfigurar todo assim foi em assim quis que fosse. Resignação desejante. Nietzsche disse que só acreditaria em um Deus que soubesse dançar. Eu só acredito em um ato criador que seja dança à beira do abismo, acrobacia dançante que é ao mesmo tempo risco e salvação. Meu fantasma. Formigamento. Teus olhos. Dor pequena. Cair, para perder o medo da queda. Inventar intimidade com a queda, para perder o medo da queda. Inventar a queda, para deixar de morrer caindo. Desejo de me exceder. Atração pela paisagem, paixão pelo fora. Os Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: "Navegar é preciso; viver não é preciso". Quero para mim o espírito desta frase: Viver não é necessário; o que é necessário é criar. Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo.

As operações ficcionais a que me proponho se dão como montagens entre o improvável e o plausível; lampejam como acontecimentos cuja ordenação se dá interna a eles mesmos. Acontecimentos quem possuem potência para além da verificação de suas verdades factuais, pois constroem um campo de veracidades próprias. Chegar a esta vontade que nos faz o acontecimento, tornar-se a quase-causa do que se produz em nós, produzir as superfícies e as dobras em que o acontecimento se reflete. Penso que todo acontecimento guarda em si um sentido de efetuação concomitante a um sentido de contra-efetuação. A efetuação seria o acontecimento encadeado a uma noção cronológica da narratividade, amarrada por sentidos de causalidade. Já o sentido de contra-efetuação seria da ordem do irrompimento, no qual o presente do acontecimento é sempre seu próprio passado e seu futuro e sua causa não tem fundamento para além de afirmação de si. Penso na guerra travada contra a casualidade como motor produtor de acontecimento. Não a repetição do sintoma subjetivante, mas a batalha contra o sintoma do eu. Perverter causalidades. Não dar explicações. Afirmar o absurdo. Realizar o absurdo. Não revelar o truque. Revelar que não existe truque algum. Suspender temporalidades. Fingir o combate e, assim, combater.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

25.10.2010

biblioteca, meio da tarde, calor, arrependo-me da roupa que visto, quase vazia, um homem passa toda hora pelas escadas, de um andar ao outro, invento ocupações, indisposição, nunca você.


raciocínios desprendidos. ângulos, bichos, grade e inconstância. penso em dicotomias íntimas, amantes. fujo de qualquer meio termo, da economia prudente. meço pelo excesso cambiante, descontrole móvel. meu espaço, meu trajeto inseguro, minha origem inventada, meu irrompimento. alteridade, berço, ímpeto, remorso ausente. estudo e esqueço, construo, minúcia, e descuido, bruta. sem ressentimentos, paralisias, medo ou mansidão. quero o equilíbrio dos contorcionistas, dos acrobatas. a rigidez enlouquecida de quem caminha sobre um caminho mínimo diante de um abismo fundo. curar buraco no estômago com ficções em torno do esburacar, ou melhor, nunca curá-lo. viver a angustia, alegremente, dançando no fundo falso de cada terreno acidentado. rompante, taquicardia, mágica e despreparo. texto sem apoio, premissa incendiável.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Idade Média

Hoje estou facilmente seduzível. As paredes de Clouster agem sobre mim. Mas as circunstâncias não são as mesmas. Eu aqui, fora do alcance da tua mão, envio os e-mails mais verdadeiros. Quero que saibas deste adensamento, areia movediça, primitivismo controlado. Acho que por aí abriremos caminho neste matagal infestado de histórias. A edificação é falsa, transladada. (Liana T.)



Algum espaço esvaziado: tua bolsa, meu quarto, perda brusca, nome estranho. Ranhura é contorno, um território. Melancolia, latência ou pura prática de abandono.
Cronograma:
deixar que as coisas desmoronem
esquecer
medo de estar te usando
caminhada no parque
acidente em alta velocidade
provocar o encontro
nada
te jurar
Tua fala é cifra, raridade, terremoto. Eu não tenho a menor idéia. Pele pensamento, qualquer dia culpa nova. Um relâmpago que flutua em silêncio no céu abismo de eu deitada olhando teu rosto iluminado por uma lua mínima. Eu te distraio, te conjuro, eu te - me - amparo. Bacante, espectro, canhota por esforço. Fácil, insuspeita, construo uma mentira, que é minha cama quente. Dói ficar parada, e tua linha é dura, e teu corpo me machuca como um Deus cheio de fúria. Abrigo metereológico e preâmbulo líquido - e então tudo é sono ou é revolta.

domingo, 10 de outubro de 2010

10058








a cidade era você as casas antigas eram você os canais poluídos eram você os céus perigosos eram você as ruas vazias eram você a fila para entrar na catedral era você o café rápido encostada num balcão era você minha cãibra nas pernas era você o peso no ombro era você a arena de luta romana era você a turbulência no vôo noturno era você todos os meus atrasos eram você meu medo de perder minha mala era você meu olhar oferecido para um estranho na rua era você meu silêncio era você todas as hordas bárbaras que morreram nessa terra escura eram você

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Mundus Muliebris

(inspirado no trabalho Formas de Brincar do ERRO Grupo)

Três mulheres se oferecem, armadilha, desacato. O nome sugere um jogo - prosaico ritual, maquiagem, desperdício. Três mulheres demonstram seus talentos absurdos, suas inúteis vocações. Assim, causam desespero, porque não se sabe a que servem as mulheres quando só servem a elas mesmas. Vazio virado em si, falta transbordante. Amedrontam, provocam desvios, atraem, causam desejo, desejam. Corpos pedintes que se inventam em suas imprevistas solicitações. Elas rabiscam os corpos umas das outras, se mascaram, vestem roupas pós-cirúrgicas. Brincam, brigam, exigem. Que operação terão realizado sobre os próprios corpos? A mesa de jogos, elas. Mulheres-tabuleiro cujas regras não se pode conhecer. Elas pertencem a uma antiga linhagem, Sherazade criando mil e uma fábulas para se manter viva, Judith seduzindo para praticar um noturno crime, Salomé dançando para tudo merecer. Essas mulheres encenam uma potência feminina de urdir a teia-ficção-arapuca, nem femininas - no senso comum -, nem feministas - no senso comum -, antes jogo, máquina e emplume. Baudelaire escreveu o Elogio da Maquiagem e afirmou ser o artifício a única possibilidade de beleza, referindo-se a uma beleza demoníaca, maldita e profunda - a beleza quando é arte. Plínio, um enciclopedista romano, conta que Zêuxis, mitológico pintor grego, desejava pintar uma Vênus, mas não conseguia encontrar modelo à altura de sua intenção, portanto, resolveu convocar as cinco mulheres mais bonitas da corte de Creonte para que todas elas juntas, e juntamente recortadas, posassem para a pintura do que seria a Vênus ideal. O que Plínio nos conta é que a beleza já nasceu mutilada, recortada, ferida, artificial. Artifício que, recalcado pelo platonismo grego, irrompe no procedimento do artista-cirurgião. Os corpos dessas três mulheres em cena se dão como o roubo do pincel da mão do homem-artífice-platônico pelas próprias Vênus que, então, se autorizam a um auto-enxerto, auto-cirurgia, auto-invenção. Esses corpos-vênus desejantes se montam a si mesmos num ideal acéfalo, feito de potência e pulsão, escapando assim da posição da mulher-em-Falta, da histérica limitada ao divã do ser-da-razão. Aproximam-se, antes, de um feminino obscuro, aracnídeo, da vocação de perturbar a polidez e a economia do mundo. Baudelaire escreveu que a mulher “é uma espécie de ídolo, estúpido talvez, mas deslumbrante, enfeitiçador, que mantém os destinos e as vontades suspensas a seus olhares”. Graciosamente estúpidas, porque recusam o saber estéril, cartesiano, simples e positivo de qualquer forma de diplomacia. Artifício intempestivo, maquinaria acidental. Lembro de um trabalho do Walter de Maria, o Lightning Field. Nele, o artista ocupa uma planície semidesértica do Novo México com quatrocentas estacas de sete metros de altura, colocadas numa matriz geométrica rigorosa. Sendo esta zona frequentemente assolada por tempestades, as estacas metálicas passam a funcionar como pára-raios. Os raios manipulados pelo artista parecem ser da mesma ordem destes corpos que, inexplicavelmente, irrompem nas ruas da cidade. Caos premeditado, desmedido calculado, delírio ensaiado.

Baudelaire escreveu sobre as cortesãs como temática da pintura moderna, mais desconcertantes que as próprias cortesãs, por se tratarem de pura imagem, pura inapreensão.

“ Aqui majestosa, lá delicada: ora esbelta, frazina até, ora ciclópica: uma elegância provocante e bárbara . Caminha, desliza, dança e rodopia com seu peso as crinolinas bordadas que lhe servem ao mesmo tempo de pedestal e contrapeso. Representa perfeitamente a selvageria na civilização. (...) Às vezes assumem sem querer poses de uma audácia e nobreza que fascinariam o estatuário mais delicado, se este tivesse a coragem e o espírito de colher a nobreza em toda parte, mesmo na lama.”

Os corpos das performers de Formas de Brincar me afetam, porque jogam na tensão entre a obscena doação e a desoladora impermanência. A excessiva majestosidade do que se esvai. Mundus Muliebris é um termo latino que designa o mundo da ornamentação feminina, um cosmos excessivo, assemântico, agramatical . Explosão sem desígnio, pura imagem dançarina. O contrário de uma Medusa rancorosa, pedrificada e pretificante, elas são Eurídice se divertindo no Hades. Lampejos desconcertantes que me engolem por inteiro e depois somem na noite escura de um dia em sua normalidade.

domingo, 3 de outubro de 2010

- me ensina a não prestar, eu quero
-- eu também quero. por que você é tão longe? não sei, você é longe, mas parece minha vizinha. nao me leve a mal, eu nao falo de beleza, eu nem sei se você tem dentes. sei lá, você é um troço, mas eu gosto. uma maquinaria
- não te levo a mal, mas você me assusta às vezes
-- por que? o que é te assustar às vezes?
- não sei, algumas coisas que você fala
-- é mau?
- demoro a digerir. acho que não é mau, só é difente
-- eu não quero falar de arte, eu não quero te impressionar, eu não sei o que é arte, nem literatura, me aceita assim, seco? eu vou lhe aceitar, fria
- eu aceito, seja lá o que for aceitar
-- aceitar é a mesma coisa, eu acho, de acreditar nas horas do meu relógio falsificado
-- eu sumirei, só para ver alguma mensagem oculta sua
- tá, combinado
-- não, você gosta, deve adorar. eu falo muitas trivialidades, oi tudo bem?

sábado, 2 de outubro de 2010

"Vou vazar teu olho/ E remexer no estado natural da tua fala/ Nesse desejo tateante fora dos gestos/ Na pele/ Dessas formas envolventes/ Nesses meios/ Teus lençóis com cicatrizes/ vão gelando a noite e meus cabelos crescem / nessa trança salva-vidas"